sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Sobre túneis e navalhas.

Falho em controlar minha memória,
expulsar dela as sete páginas de frustrada tortura.
Meu bem mais precioso e inigualável.

Houve espaço em meu pequeno coração,
esfaqueado,
para guardar em ironia tal lâmina?
Como pude, de tantas jóias e preciosidades, guardar-me justo disto.

“Sete páginas”, penso.
Deveria ter presumido então ser o bastante para derrubar-me agora.
Mas não,
certamente não é.

Ferrugem e desgaste a corroera.
Ferrugem do tempo e da invulnerabilidade,
que hoje me assombra.
Impedindo-me de ter o desejo sofrido de sofrer!

Minha relíquia não pertence ao passado, não.
Passado é pai do presente, mas parece tão desconexo, tão pobre e longe.
Mas é passado o que há em meu coração e em sua pequena navalha.
Passado e nunca mais passará, nunca mais arderá, e nunca mais maravilhará.

Nunca mais queimará no íntimo de meu ser,
as mais miseráveis escolhas e caminhos,
que me levaram àquele túnel negro de tristezas.

Pois sempre houve uma saída ao breu,
a qual neguei inutilmente por tanto tempo seus poderes de cura.

Mas, que minha lâmina agora, sem corte, refresque meu coração,
pois,
há de bater novamente em excitação!

Há de haver paz na luz após a penumbra.
Onde a navalha servirá, sim,
a um propósito justo à sua existência:
Será meu bem mais precioso não em dor, e não em torpor.
Mas em lembrança.

E que nesta paz, novamente há de ferver em meu ser
os demônios que fizeram-me guardar minha tortura.
Há de haver uma segunda chance à melancolia.
Pois seria um túnel demasiado curto,
caso não houvesse volta à sua atraente escuridão.

© Todos os direitos reservados.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Metáfora de homens e seus unicórnios (crônica em primeira pessoa).

Atenção: Este texto não foi passado por nenhum instrumento de censura e pode constar na lista Index Librorum Prohibitorum*.

Digamos que um dia eu afirme ter visto unicórnios. É irrelevante se eu vi ou não, eu convenço pessoas de que vi.
Isso é questionável?
Afirmo então acreditar na existência – impossível de se provar – dos unicórnios. É irrelevante se eu acredito ou não, eu convenço pessoas a acreditarem também.
Isso é questionável?
Logo, eu clemo que os unicórnios são superiores a nós humanos, são seres míticos, e que devemos idolatrá-los. Acreditando ou não eu nisto, faço com que outros acreditem.
Isso é questionável?
Passo a fundar locais de adoração aos unicórnios, funcionando em conjunto com a sociedade em volta dos mesmos. Trazendo cada vez mais pessoas ao culto.
Isso é questionável?
Afirmo que para o mantimento de tais estabelecimentos é necessária a contribuição monetária dos indivíduos os quais participam de seu culto.
Isso é questionável?
Não há prestação de contas, o capital pode vir a tornar-se excessivo.
Isso é questionável?
Em tais estabelecimentos, pessoas – que podem ou não acreditar em o que estão a fazer – são nomeadas por mim portadores da voz dos unicórnios, e tal classe social diferencia-se do cidadão comum e mesmo do participador do culto.
Isso é questionável?
Além de nomear os portadores de voz, também me sinto no direito de afirmar escritos de minha escolha como sagrados dos unicórnios. Acreditando ou não nesta identidade sagrada.
Isso é questionável?
Regras são criadas através da palavra – oral ou escrita – que digo serem dos unicórnios. Tais regras configuram a contribuição financeira ao culto como regra e percentagem da renda do membro; e regularizam o seguir de dogmas, verdades absolutas que não devem ser questionadas.
Isso é questionável?
Os dogmas servem como julgamento das atitudes dos humanos.
Isso é questionável?
As pessoas as quais nomeei serem portadores da palavra dos unicórnios são, por decisão minha, obrigados a manter uma vida sem uniões conjugais públicas. Sendo tal decisão para manter a herança destes como capital para meu culto ou não.
Isso é questionável?
Tais pessoas passam então, por não poderem satisfazer-se sexualmente com cônjugues legítimos, a abusar sexualmente de jovens de diferente ou mesmo sexo.
Isso é questionável?
Protejo tais pessoas do código judicial da sociedade de fora do culto aos unicórnios.
Isso é questionável?
Por apreciação a esta proteção, a recrio com o nome de Liberdade Religiosa, protegendo a privacidade de legalidades ou ilegalidades que ocorrem na adoração aos unicórnios.
Isso é questionável?
O culto se passa para a maioria da população. A palavra “unicórnios” passa a ser gravada com letra inicial maiúscula. Torna-se natural de um membro da sociedade ser adorador dos Unicórnios.
Isso é questionável?
O costume da crença passa a replicar-se hereditariamente. Crianças sem poder de decidir judicialmente sobre si mesmas são criadas na esfera do culto aos Unicórnios.
Isso é questionável?
Além das crianças, também convertemos povos indígenas para o culto.
Isso é questionável?
Questões científicas da sociedade, trazidas a tona por não-membros ou membros do culto entram em conflito com os dogmas estabelecidos. Portanto eu inicio um movimento público contra tais cientistas.
Isso é questionável?
Este movimento torna-se violento.
Isso é questionável?
A esfera já citada do culto aos Unicórnios engloba também escolas, colégios e universidades, mesmo estando em conflito dogmático direto com a ciência.
Isso é questionável?
Do dia para a noite meu culto dos Unicórnios ganha proporções multicontinentais. Filiais de meus estabelecimentos abrem-se em todos os cantos do mundo humano.
Isso é questionável?
O capital que gira em minha instituição é exagerado. Sobra-se dinheiro de todos os lados, e não devolvemos este dinheiro para a sociedade.
Isso é questionável?
Interesses de capital se acumulam, financiamos empresas, instituições, ideais, partidos políticos.
Isso é questionável?
Conflitos de interesses causam conflitos armados, inicio guerras em nome dos Unicórnios.
Isso é questionável?
Por fim, a ciência sobressalta seus impedimentos por mim criados. A sociedade não tolera mais a perseguição às pessoas do saber. A perseguição acaba, mas não há justiça feita a seus antigos promovedores.
Isso é questionável?
Além da justiça não ser cumprida, as escolas, empresas, e centros de conhecimento em geral geridos ou financiados por meu culto mantêm-se em funcionamento. Mantêm-se, naturalmente, conflitos de idéias em tais locais.
Isso é questionável?
Todo o capital do mundo é taxado de impostos, porém não o nosso.
Isso é questionável?
Com a taxação deste capital seria possível um retorno à sociedade, benfeitorias às comunidades. Porém isso não ocorre. Além disso, uso este dinheiro livre de impostos para financiar organizações de terceiros, e algumas minhas, e fazemos fortuna.
Isso é questionável?
Enfim estamos no século 21: Pessoas só são responsáveis por suas atitudes a partir dos 16 ou 18 anos, variando pela legislação nacional, mas ainda introduzo idéias em cabeças de crianças, e rituais de meu culto antes das mesmas possuírem a liberdade de escolher sua participação ou não; Meu culto age em países de grande miséria, e o capital que naquele gira ainda não passa por impostos, e ainda atuo por regras de recolhimento rígido dos membros de meu culto; Meu culto ainda entra em conflitos com a ciência, mesmo que esta já tenha conseguido explicar muito do funcionamento do universo e da vida, e ter comprovado errado cientificamente diversos dogmas por mim e meu culto apresentados; O capital do culto aos Unicórnios ainda financia instituições de conhecimento e corporações, e além disso tais organizações geram lucro ao mesmo; A ética ainda é colidida por meu culto, continuamos a julgar pessoas por dogmas por nós mesmos criados, direta ou indiretamente.
Isso é questionável?

Onde está a linha? O que está a ponto de ser julgado certo ou errado?
O quanto de tudo isso pode ser questionado? Mas além disso, o quanto deve ser questionado?

É preciso explicar a metáfora? Creio que não. Seguidores e devotos de "unicórnios" estão por todos os lados, e pessoas e organizações que se aproveitam destes seguidores também. Muito além de personagens históricos ou atuais, sou a personificação do medo primordial - do fim existencial -, da solidão e da depressão humana.

* Index Librorum Prohibitorum: Lista de publicações proibidas pela inquisição por heresia, "deficiência moral", "sexualidade explícita", "incorrecção política" etc. Contém obras de Galileu Galilei, Nicolau Copérnico, Nicolau Maquiavel, René Descartes, Rousseau, Montesquieu, Voltaire, entre outros; abolida em – pasmem – 1966.

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quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Memento* em forma de carta.

O motivo pelo qual sento hoje e escrevo é simples: Não quero deixar-me esquecer.

Pode parecer normal tal desejo, mas certamente ele não o é quando se trata do assunto pelo qual escreverei. Comecemos do início:

Há um ano e poucos dias, houve para mim o fim de uma Era. Quem nunca se apaixonou pode indelicadamente não concordar com o que direi, mas a verdade é simples e curta: três meses são uma vida quando bem vividos. E estes três meses acabaram-se em três ou quatro dias. Não sei ao certo. Talvez meu desejo de consciência memorial seja recente. Talvez, não, certamente é recente.

Leio hoje um trecho do pior tipo de literatura, a fictícia, onde a dor de um fim chega a ser física de tão destrutiva e imobilizante. Isso faz-me lembrar de meu fim, da época já citada.

Se um dia nos questionarmos o que é a vida, não será a resposta sobre energia dada por um físico que nos trará esclarecimento, tampouco a resposta fria da biologia. A vida na realidade é um conjunto de memórias. Só isso. Um mero conjunto de memórias quimicamente propulsionado a continuar arrematando memórias. Memórias sensoriais, emotivas, de todos os tipos.

E eis que pergunto-me, se deixarmos pouco ou muito desta herança do tempo que nos é dada desvanecer-se, não estaríamos perdendo o pouco da vida que temos? E se somos os únicos a tê-las, não somos criminosos em ética ao perder tal patrimônio? Certamente... Mas, e se tais memórias são as tristezas mais fortes e destruidoras, perdas inimagináveis ou desgraças absurdas? São ainda a nossa vida, que estamos perdendo, ou estamos a criar a verdadeira vida deixando tais podridões de lado?

Não posso ignorar, apesar da força que tal conscientização implica: ainda me recordo da época sombria da qual irei relatar como sendo eu o sofredor de sua desgraça, e ninguém mais. Sou eu o recebedor do presente do lamento e da melancolia, então devo guardá-lo como um bem tão precioso quanto minhas memórias mais belas e graciosas.

Enfim, enquanto digiro a literatura da dor mental-física, pergunto-me quantas pessoas ao ler tal obra perguntam-se intrigadas se perderam algo importante por não terem sentido desgraça semelhante em suas vidas. Inúmeras, presumo.

A verdade é que não é uma dor física. Não é passível de torpor. E não é adiável. É terrível, mas é rápido; é aterrorizante, mas no fundo é libertador. É a pior coisa que se pode sentir em uma vida de loucuras emotivas, mas é ao que nos agarramos no fim. Esta é a verdade.

Quero que entenda, e que se lembre, ou que possa imaginar: Era o mais terrível dos vazios. Incomparável com qualquer depressão repentina, é avassalador, e age no primeiro minuto do dia, quando se acorda. Os olhos se abrem, os sonhos se desvanecem e a realidade chega em um baque: Pou, e tudo vem a tona, esmagando-o.

Você não pensará neste momento no prazo do seu trabalho escolar a entregar, ou do pagamento do seu IPVA ou qualquer coisa do tipo. Você só pensará nos olhos dela. E no seu sorriso. E isso já é o suficiente para fazê-lo querer poder jogar-se para trás e adormecer o dia todo para ver se no dia seguinte estará tudo acabado. E você sabe que não estará.

Não sei por quanto tempo esta fase durou. O baque de manhã é o pior elemento desta depressão, sem dúvida, pois você tem uma vida além daquilo que perdeu, é inevitável. Seu IPVA e seu trabalho escolar ainda estarão lá independente da vontade sua de que nada mais exista, ou de que magicamente o tempo volte atrás e que você possa mudar uma palavra ou outra que tenha dito.

Pois bem, os diálogos são os que mais atormentam. Disso talvez se lembre, de como os diálogos simplesmente repetem-se até o ponto em que não se pode mais saber a diferença entre o que foi dito e o que você desejava que tenha sido dito.

E os diálogos o perseguem, e você dorme. E você acorda se sentindo uma merda, e os diálogos retornam às vezes com imagens, a visão é sempre o sentido mais traidor. E passam-se dias, e semanas. E quando você acha que está mal, os finais de semana chegam e o ócio te derruba como o atropelar de um monstro que você sabe que esteve toda a semana te esperando; ele estava na espreita.

Mas os dias passam, as semanas passam, e sua atenção irá se prender a outras coisas. Não preciso dizer as datas que seguiram ao meu fim, não é verdade? Pois na verdade é o nosso fim, porém, está tão longe de mim agora, tão seguramente e pacificamente longe de mim, que creio que esteja desaparecido para você velho tolo. Não jogue partes de sua vida fora, lembre-se disso, nem se esta possua momentos os quais você julgue merecerem poda.

Pergunto-me se ao ler essas palavras conseguirá lembrar-se daquela velha cama, daquele velho quarto, e lembrar-se dos vazios das manhãs, ao menos. As memórias dos diálogos, e essas coisas. Só há algo pior do que a tristeza: O vazio que a substitui quando se quer esquecer. Lembre-se disso.


Com amor, admiração, e forte desejo de conhecê-lo,
Aquele que fez uso do que veio a ser seu corpo, e que abrigou sua mente, há tantos anos.

*Memento: Agenda onde se escreve tudo o que não deve ser esquecido.

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domingo, 2 de agosto de 2009

Moça do vestido florido.

Que de mil véus seja seu leito de descanso,
após injuriar-me com a mais bela das danças.
E a mais nobre das posturas.

Flamenco minha alma,
e arrasa em sapateio meus sentidos,
por entre passos que meus olhos falham em compreender
mas sucedo sempre em sentí-los.

Do vestido florido, que me faz hipnotizado,
visita-me em sonhos, em situações indescritíveis.
E que vivas sejam as flores, no traje que acompanha
todos sua graça e todos seus movimentos.

Por que, pergunto-me, sinto-me o mais honrado
ao poder ver a magia de seus passos, como se os fizesse para mim?
E também, por que me considero o mais inafortunado dos homens
vendo a mais bela das criaturas,
sem poder nem mesmo tocá-la ou compreendê-la.

Vejo uma dança, a qual não está no futuro nem no passado,
onde leves-me à intensidade que realiza seus jogos de graça.
Unidos, somente um, em um palco de poucas luzes.

A beleza é fraca, é fútil e traidora.
Mas a beleza do movimento da moça do vestido florido...
É surreal, é magestral.

Quem sou, que creio um dia poder dividir uma rumba qualquer,
com a moça do vestido florido?
Há todo um universo entre minha realidade,
e a dela,
onde tais flores fazem-me sempre fascinado.

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