domingo, 20 de dezembro de 2009

O despertar de Maurício - Segunda Parte.

O despertar de Maurício - Primeira Parte.

De forma geral, Sonia comprovara ser uma boa - talvez "funcional" seja o adjetivo mais apropriado - companhia para Maurício através de todas aquelas singulares noites em que convivera com seu companheiro.
Já há tempos decifrara o terror nas feições dela quando esta o abraçara com unhas penetrantes em seu lombo; o padrão de seu leve corpo em dobrar-se agilmente de forma a jogar seu rosto ruivo acima dos ombros dele, para que este não visse as lágrimas que desciam de seus olhos; a graciosidade com que após deixá-lo para deitar-se (desta vez para o sono e não para o carnal), sempre sola, jamais com seu Mau em seus braços, soltava suspiros de gratidão e prazer.
Ele via, na forma particular dela prendê-lo a si mesma, o desespero de alguém que, como ele, soltou-se de sua órbita natural para cair em um mundo de realidades tão frias e cruéis (como só a realidade consegue ser) que fazem com que a não-realidade seja agradável de tão leviana.
Olhou-a brevemente. A silhueta esbelta de seu corpo de fina cintura sob a parcial escuridão era solene. Sob seus cabelos - longos e lisos, finas linhas de vermelho bronze -, escondia-se o rosto rubro de sardas, o único que Maurício vira até então o qual combinara graciosamente com o fogo emanante das retinas dela, de si mesmo e de seus companheiros. Era bela. Jamais a amaria. Jamais. Porém, era bela.

O dia do ultimato romântico da libertação, da heróica soberba escapada - embelezada por todos os efeitos pirotécnicos e acrobáticos dignos das maiores empreitadas cinematográficas -, daquele dia de verão em que Maurício se perdera de sua colméia para adentrar em um rebanho; o dia dos dias. O dia: Se perdera em sua memória.
Não nos cabe compreender a memória, antes devemos tentar compreender o funcionamento do intelecto. Das analogias diversas que a mente desperta de Maurício incubara para tentar explicar sua própria incubação, a ele era preferida a dos halteres harmônicos. Em seus pensamentos - agora tão inconvenientes, incontroláveis, caóticos, belos, maravilhosos, traiçoeiros, cruéis - sua mente era como um daqueles garfos metálicos usados para ensinar física da ressonância: algo ordinário, que causa pouco mais do que leve fascínio juvenil por repetir o som de um de seus semelhantes quando o outro está a ressoar em sua frequência. Algo repetidor. Frequências repetidas eram sua mente pré-despertar. Após o mesmo, era como se seu haltere fosse então provido de personalidade própria, frequências próprias, caos particular próprio.
Metáforas de halteres talvez explicariam o porquê de, após pouco mais de um ano, a lembrança de seu "dia dos dias" seja em suma um emaranhado de descobertas meramente compreensíveis, de medos alucinantes e de uma breve miragem de um automóvel conversível rumo ao horizonte.

*

Louise era o único cuja presença acalmava Maurício. Possuía pele de um negro opaco e intenso, físico mediano, era alto - algo como dois metros de altura -, e possuía um sorriso que o fazia camuflar-se em garoto: ao mesmo tempo o diminuía e o engrandecia. Maurício o admirava como se admira um objeto tão raro cuja toda e qualquer característica deveria ser estudada, cujo todo e qualquer aspecto deveria causar fascínio. Louise era raro porque era alegre. Era calmo e era tranquilo, como ninguém a seu redor era. Mau tinha a crença secreta de que Louise, em seus momentos de alegria, fazia fugir brevemente pouco do vermelho, característico daquele povo, dos seus próprios olhos, liberando parte do que costumava ser suas janelas da alma, antes de seu próprio e particular despertar. Castanho esverdeado era a cor que Maurício pensara vislumbrar em tais raros momentos, mas jamais perguntara a seu colega quais eram as cores de seus olhos. Às vezes o mistério é mais agradável do que a verdade e sua possível desanimadora realidade.

- Grande Maurício! - Saudou seu colega. Pelo seu tom de voz ja era de se perceber que algo não era normal.
- Louise... Por que você aqui tão cedo?
- Vim informar-te um pedido do alto escalão...
Instantaneamente o rosto de Maurício esbranquiçou-se. Seu coração encheu-se do maior dos pesares; seus olhos amearaçam lágrimas.
- Não, cara. Não, não, por favor... Mais um não, por favor não... Por que eu de novo?
Louise perdeu seu doce sorriso. Doía-lhe estar naquela posição, ser ele a informar a seu amigo.
- Você é o cara para esse serviço, sabe disso... Precisam de você nessa... Escute: É um garoto desta vez, um piá pequeno...
Ao som destas últimas palavras, Maurício aterrorizou-se ainda mais, porém nada disse. Não havia por que descontar sua ira em seu companheiro - e desta vez mero mensageiro. Com um olhar que dispensava palavras, Maurício fechou a porta de sua residência para voltar-se a seu leito.
O terror de Maurício é facilmente explicado: Desde sua chegada ao "vilarejo dos despertados", seus governantes acharam nele um particularmente habilidoso professor. Professores são os nomes dados aos infelizes que, incumbidos do igualmente inafortunado dever de servir à comunidade, passam horas defronte aos seus novos cohabitantes, em um processo de limpeza. Basicamente, quando os halteres estão perdidos entre o caos de novas e incontroláveis frequências, o professor tenta proporcionar algum sentido para seu colega. Tenta fazer o recente despertado reconhecer o que está ocorrendo ao seu redor. Maurício sabia pelo protocolo que tal horrível tarefa de combater desordem mental com palavras ocorreria já no dia seguinte, e acima de tudo seria uma criança: as mais imprevisíveis dentre os insanos recém-chegados.

Continua.

domingo, 1 de novembro de 2009

Sentir - Segunda Parte.

Sentir - Primeira Parte.

Deixara de ser berro bélico, era agora obra sinfônica.
Às manhãs, "Laila" era motivo de sorrisos, de fazer roçar a cabeça contra travesseiros e cobertas como felino preguiçoso. Às refeições e aos momentos de concentração era refúgio singelo. Quando dito no ócio, despertava alegrias crescentes, incendiava nele como brasa, fazendo-o sentir-se novamente em seus braços, em seus insaciáveis lábios e dentes.
Envolvera-se nela, em tudo o que ela lhe proporcionava. Brincava em sua matemática platônica: fazia-se "função de Laila", pois nos sorrisos dela, em sua fala e em sua forma de ver o mundo, ele moldava seus próprios sentimentos. Aliás, não os moldava, estes faziam-se perante tais fatores qual girassóis seguem sua estrela, qual folhas soltas percorrem o vento: em harmonia metódica, um ritual já a ele inevitável.
Igualmente brincava consigo sobre a bobeira da qual era agora assíduo. Tolos e infantos eram seus atos, às vezes. Fazia-se um novo homem, com aquele sorriso bobo estampando sua face. Estava perdidamente encantado por sua agora - e talvez não tarde - companheira.

Ciclos faziam-se: seus beijos incitavam-o a desejar aquele profundo olhar dela. Seu majestoso olhar fazia querer beijá-la. Nesta dança repetitiva perdia-se a mente, e a sobriedade de seus pensamentos; como umidade em densa nuvem, condensavam-se suas idéias - antes lineares - e desciam por sua mente em gotas dispersas, deixando-o desnorteado.
No encanto dela, fluía nele tal chuva de aleatoriedades. Ocorria-lhe suas atitudes passadas, ocorria-lhe seus desejos, todo seu pensar. Transpassava-o suas obras preferidas, escritos, músicas, tal quais canções fluiam em tamanho caos em que se perdia a ordem e a destreza em administrar seu próprio consciente.
Divagava neste caos, naquele dia, em seus desenhos, seus tão adorados desenhos. Divagava sobre a vida que predescera Laila, sobre as mulheres que igualmente a predesceram. "Nunca tiveram chance alguma", afirmava para si. Sem saber o porquê, divagava em uma canção particular, que na sua adolescência era objeto de grande fascínio, sobre chuvas e buracos em telhados. Divagava sobre o que viesse a si, já não tinha controle sobre sua mente.

Longe de sua adocicada boca, perdia a noção daquele elemento que antes em sua vida fôra concreto, que por vezes havia sido motivo para sua irritação ou desconcentração, mas cuja constância constara ser definitivamente fiel, e de repente não mais o era: o tempo. No castanho celeste de seus olhos se perdiam as cordas que o atavam à linearidade cronológica. Dias aparentavam semanas; igualmente horas bem aproveitadas o transpassavam com a agilidade inclemente de um forte vento gélido de inverno.
Não sabia ao certo o quanto descorrera entre sua declaração a ela e o presente. Afinal, seria este o que estava por viver? Ou seria um sonho, um maravilhoso sonho de primavera, do qual não se deseja acordar?

Às noites, "Laila" era calmaria; era êxtase e era encantamento.
Naquela madrugada, ele pensava nos belos momentos de seu dia, os quais passara com sua musa. Divagava sobre sua canção da chuva, sobre seus pensamentos em condensação escorrendo-o.
Antes de apagar as luzes de seu quarto de dormir, vislumbrou uma última vez o mundo a cores. Riu para si mesmo, com a ingenuidade de quem conhece uma piada graciosa, e que se contada em voz alta não reproduziria nem de longe todos os seus encantos.
Deitou-se em seu leito com sua mente a cantarolar os versos:
"Estou a arrumar um buraco por onde a chuva entra, e impede minha mente de perguntar-se:
Para onde ela iria?"

Continua.

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quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Projeto Ricky Fitts: Adjetivando a beleza. I

O Projeto Ricky Fitts consiste de uma série de atestamentos que descrevem – ou tentam descrever – a beleza do mundo. Tais atestamentos, curtos, darão ênfase à descrição de cenas soltas, por vezes desconexas, de eventos e acasos que por ventura ocorrerem no dia de sua escrita ou que forem despertados pela memória.
O nome é homenagem ao personagem Ricky do brilhante Beleza Americana (American Beauty – 1999), e o projeto em si é inspirado em, dentre outras maravilhosas belezas, “Noites” - http://discutindocommeusmonologos.blogspot.com/2009/08/noites-parte-i.html .
Ricky Fitts, em sua cena histórica, sob atuação de Wes Bentley, descreveu a beleza do mundo ao mostrar uma sacola plástica, que estava “tipo dançando” com ele, por quinze minutos ao vento.
Todas os fragmentos – nomeados “Coplas” – serão respostas à questão: “A beleza é?”.

Primeira Copla.
É uma piadinha feita à beira de estrada. Um relance de uma fantástica dança. Uma foto de sorrisos, uma mesa de boas conversas e bons humores, uma música de fundo e uma cerveja gelada. É o que se depara quando se acorda após a fadiga e o sono, após a chegada. A maravilha de uma conversa num carro de madrugada. É uma frustração tola e cômica comparada ao dia incrível que se passou. O som da quebra de um chocolate meio amargo, e um filme sobre as mais humanas das emoções e dos anseios.

Segunda Copla.
É uma costela em fogo de chão. É a fumaça da madeira queimando, através das cinzas e da visão difusa pelo calor. O arder nos olhos do quente. É baixar a pressão e ver o mundo com olhos de calmaria, não ver o tempo passar e não sentir o sorriso subir. Um sanduíche com nacos espessos de cebola. É a conversa que se tem com um recém-descoberto sábio, e os olhares de conforto e desconforto que ele o passa. A menina que interrompe conversas e a encarada que seu amigo recebe, o humor que isso produz. A mais inquietante vontade – e nostalgia – de simplesmente estar com uma pessoa especial. É tatear o bolso à procura de ouvir àquela música que está na sua cabeça. É sol, gramado e cansaço. É uma imagem que diz magistralmente o que infinitos escritos não comporiam. O sorriso por um apreço recebido, são os escritos em um computador silenciado.

Terceira Copla.
É o medo gostoso que cresce pela espinha ao tomar-se em mãos um automóvel em alta velocidade, a sensação de poder e de merecimento ao saber que vidas humanas estão a seu controle. É o pairar do cosmos sob o olhar daqueles que mal o conhecem por motivos de luzes artificiais; a doce sensação de parecermos tão pequenos, ao depararmos com um céu lindamente estrelado. A forma com que azeite sob carne de onça toma uma cor de amarelo desbotado ao receber gotas de sumo de limão, e como o sal que despenca sobre este lembra neve caindo em um lago de ferrugem.

Quarta Copla.
É uma viagem para um lugar ensolarado. A sensação da pedra dura e fria de arenito ao pousarmos as costas sob a parte seca de uma cachoeira, e a forma com que o sol nos cega e nos ilumina, em diversos sentidos. É um pássaro azul, uma coleção de borboletas amarelas que insiste em sobrevoar a beira de um rio aparentemente infinito. Um passear de barco em que, como no Louvre, se perdêssemos o tempo sensato a ver cada um dos pontos verdes, marrons, amarelos ou azulados, de suas peças de arte, amontoadas sobre morros imponentes e plantas aquáticas graciosas, perderíamos uma vida toda e por fim nada perderíamos. É o correr de um lagarto, uma brasa e um copo d’água de poço. É música, sorrisos, e uma noite perfeita por entre uma brisa leve de primavera.

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segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Sentir - Primeira Parte.

Sentir - Segunda Parte.

- De todos eles, você se identificou com a vampira, por quê?
Ele esperava esta pergunta, realmente não era uma revelação comum sua afinidade com a personagem feminina. Ao invés de responder de imediato, olhou-a brevemente e levou seu copo à boca, pensando em o que diria.
Ele poderia, sim, falar sobre como se identificava com tal ser fictício pela forma com que, sob perigo quase físico, a personagem requisitava o pedido para sua entrada em uma residência humana antes de fazê-la. Se identificava por que, desde sempre, sentia a necessidade de ser chamado a entrar, não em casa de outrém, mas sim em seus íntimos, em falar seus sentimentos, em gozar da solone experiência de receber ou não a reciprocidade de seus desejos perante uma mulher.
Poderia discorrer sobre como sentia-se inseguro em relação a ela, especialmente. Sua oratória privilegiada o daria palavras para descrever sua forma própria de admirá-la.
Conseguia ver-se falando sobre como, de uns tempos para então, passou a ter seus cadernos de desenho monopolizados por círculos do azul amarronzado que eram os olhos dela. Como igualmente sua mente encontrava-se monopolizada por também seus sorrisos e suas formas, olhares e feições. Via-se dissertando sobre como seus dias já não eram mais presenciados no real, e sim em um local imaginário de sua mente em que ela estava sempre presente, e quando fechava os olhos para descansar-se era ela quem o visitava em seu sono.
Imaginava como explicaria a forma com que, tola e invariavelmente, ria ou ao menos sorria ansiosamente a qualquer palavra vindo da boca dela; de como os sorrisos dela eram os mais belos presentes que poderia receber em uma vida de condecorações e apreços. Como a mera visão de seus traços fazia com que o mundo de repente tornasse a cores; Como que, quando ela o olhava apreensiva, ele se sentia o mais importante dos homens.
Falaria sobre como, às vezes, tais olhares criavam pequenas – e breves – raízes de esperança em seu coração. Sobre como, nestes momentos, divagava sobre como seria beijar as costas das mãos dela até o alto de seus ombros, como seria dar pequenas mordidas nas laterais de sua maxilar; em como seria o toque de seu busto sobre as costas frias dele, e a sensação do toque dos lábios dela em seu torso e em seu pescoço. Falaria sobre como tais curtos momentos daquela crença estavam tornando-se mais comuns a cada dia, a ponto de darem a ele um gosto de viver nunca antes presenciado, causando-o desejos de dar “bom dia” a cachorros quando saía de casa; falaria sobre como levantava sorrisos pelos cantos de sua boca ao ver casais de mãos dadas, ou ao ver pequenos fragmentos quaisquer em sua rotina que o lembrassem dela.
Em verdade, ele poderia discorrer horas sobre a beleza que ela representava. Sobre como as letras que compunham “Laila” já não eram mais símbolos literários, e sim peças sublimes de um grito de guerra emanado com suavidade, que afastava com sucesso qualquer mal que o pudesse atingir. Sobre como aquela palavra representava a ele um universo de elementos de beleza e misticidade maravilhosos, que nele faziam despertar as mais íntimas alegrias humanas, indescritíveis de tão majestosas.
Poderia discorrer sobre tudo isso e muito mais, pois tais sentimentos já o eram verdade inquestionável, e naturais a ele como o pulsar de seu coração ou o alargar de seu peito ao respirar.
Seu copo já estava à mesa e a água que este continha já estava inerte. Ele não havia falado palavras quaisquer, só a olhava diretamente em seu rosto, com seu olhar passando além dela e além do cenário em que se encontravam, pousando um lugar em que ele teria, sim, a ousadia de proferir todas aquelas expressões que enfim, mal dariam noção de quanto era o seu fascínio por Laila.
Por fim respondeu outra resposta falsa qualquer, sobre desejos vampirescos ou coisa que o valha. Sentiu ódio por si mesmo, mas ódio não era um sentimento que encaixava em qualquer cenário em que ela estivesse presente, e logo sua ira tornou-se apenas arrependimento por não ter a audácia da qual desejava.

Laila veio a ouvir de sua boca aquelas palavras – ou o que restara delas – eventualmente, mas não sem antes o decorrer de intermináveis meses, tempo em que ele presenciou sua Laila em braços de outro, e em que ele mesmo dividiu seus lábios e seu corpo com outras que, a seu ver, mal passavam de transeuntes em sua vida até aquela que o fizesse sentir-se em um mundo a cores novamente. Por vezes chegou a acreditar que esta não precisasse ser Laila, por vezes acreditou em suas mentiras de que era indiferente em relação a ela. Por vezes apaixonou-se.
Além de tudo o que havia dispersado em sua mente para lhe falar, discursou também sobre a inspiração que ela o presenteava, para toda e qualquer obra e atitude que ele realizava, mesmo quando sob a custódia de outras moças. Bebia de sua fonte de inspiração como se bebe do leito da cachoeira que possui a melhor e mais pura das águas, com a naturalidade e a ansiosidade quase feroz de uma criatura de sede incontrolável, e profundo apreço pelo que lhe desce a garganta.
Veio-se a lembrar do dia em que finalmente abriu seu coração a ela por toda a sua vida. Os meses em que carregou o fascínio por aquela mulher foram penosamente passados com um véu de máscaras em seu rosto, fala e olhar, por vezes denso, por vezes em farrapos, quando já exaurida a força de impedir que o resto do mundo soubesse a intensidade de seus sentimentos e de seus anseios. Naquele dia que enfim chegou, como um viajante fadigado, deixou-se soltar aquele fardo que sob suas costas tanto pesava.

Continua.

Dedico este texto a Khaled Hosseini, com sua personagem Laila de A Cidade do Sol.
E também a todos os escritores, que como Hosseini faz com extrema qualidade, criam através de sua arte ricas descrições das emoções humanas.
E naturalmente a todas as Lailas, nossas quedas d’água de infinita inspiração.

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sábado, 19 de setembro de 2009

duas notas de dois e uma de um.doc

Farei-me curto e objetivo. O que menos quero é acordar minha amada ou alguns de meus agora já não tão pequenos pequenos. Algo em minhas memórias despertou-me de meu início de sono, e terei de carregar um par de olheiras e fadiga amanhã para ter a certeza de que farei aqui meu memento bem escrito. Trata-se de um momento em minha juventude, um acontecimento que pode ser considerado comum, porém quiçá o presságio de uma vida mais justa.

Era algum momento de 2008. Havia inscrito-me para um vestibular o qual não poderia aproveitar sua vaga por motivos de idade, e aquele era o dia de sua prova, em algum bairro afastado de minha residência da época em Curitiba. Após a prova, dirigi-me a um terminal de ônibus, não me lembro qual, me lembro apenas de seu caos naquele dia.
A fila para a entrada no terminal por pouco não o circumpletara por completo, de gente jovem de aspecto violento. Pus-me nesta fila, e tentei fazer-me acostumado ao cenário. Lembro-me de que atrás de mim garotas, as quais não aparentavam mais de quatorze ou quinze anos, conversavam demonstrando tal efeito de drogas alucinógenas que só o escutar daquela conversa débil já era estonteante. Uma delas havia perdido o celular. Pouco importara.
Lembro-me de que em certo momento, um ônibus teve de buzinar e dar ímpetos de atropelamento para cima do povo, em busca de uma oportunidade de acoplar suas rampas e portas em um tubo do terminal. Com as portas abertas, recordo-me de que em poucos minutos cerca de quarenta, cinquenta ou cem garotos e garotas pularam por tais para evitar pagarem a passagem.
Quando finalmente cheguei à entrada, podia ver medo e tensão estampados nos rostos dos cobradores da passagem, que nada podiam fazer caso um grupo de criminosos os assaltasse. Lembrara-me de ter duas notas de dez reais na carteira, tirei uma nota e entreguei sem nem vê-la, e ao receber o troco correspondente ao valor de cinco reais, levantei objeção ao funcionário em minha frente.
Serei sincero: Não me lembro das palavras, se é que houveram palavras. Mas me lembro daquele rosto. Suas feições espalhavam-se por toda sua face estampando em letras garrafais “ladrão”, “oportunista”. Seus olhos metralhavam-me como a personificação da espada da justiça. Recebi cinco reais de suas mãos - duas notas de dois e uma de um - amassadas e entregues tal qual veneno a filho de sangue, com um asco, por parte do cobrador, indescritível.
Não pude andar mais que vinte metros. Perguntara-me se eu possuíra anteriormente realmente duas notas de dez reais. Havia as visto na fila com tamanha rapidez que facilmente poderia ter cometido um engano. Além disso, por mais que eu não tivesse dito a verdade, na situação do cobrador seria natural que ele desse o dinheiro, mesmo que relutante.
Retornei ao homem dos olhos de julgamento e perguntei-o se realmente o havia entregado uma nota de cinco. Ao receber a temida resposta negativa, entreguei em olhos de humildade as notas roubadas de dois e de um.
Ah, sim. A palavra ladrão já constava anteriormente no meu dicionário como a de um desmerecedor, de um ser sem escrúpulos, da ralé da sociedade, mas foi somente naquele momento que a senti em realidade.
Talvez seja tal simples equívoco de cifras, que tenho em meu histórico oportunidades corruptas relevadas e opções políticas questionáveis deixadas de lado. Talvez somente um olhar acusador foi o necessário a levar-me hoje a ser a pessoa honesta que sou. Não sou presidente da república, não sou grande personalidade política no quesito influência. Mas sou limpo, e o sou com o orgulho do homem que já viu o reflexo de uma corrupção de moral – uma corrupção por engano, mas ainda corrupção - em sua consciência.
Amanhã terei de ir à câmara e depois fazer outros compromissos de cunho persona publica até bastante tarde. Espero que Fernanda não se deprima por eu chegar a sua formatura tão tarde. Afinal, não posso deixar os olhos daquele cobrador fitarem-me. Não novamente.

Nota publicada por: Fer. Matos
- Encontrei este arquivo entre as pastas de papai. Salve-o contigo, creio que gostará de ler. Não é justificativa para suas atitudes, mas, sinto-me tocada por suas palavras. Papai sempre foi uma pessoa complicada de se entender. Pergunto-me se ele iria se “deprimir” se eu também faltasse a seu enterro. E se estou sendo muito dura com ele.

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terça-feira, 15 de setembro de 2009

Momento de alegrias e compreensões.

Lembro-me de como era o lanche em minha mão. Em plástico fino, aquele sanduíche natural não era o almoço de que eu precisava, era um marco, um marco das escolhas de saúde que eu havia tomado naquela época. Era ótimo, horrível no paladar, de uma carne de frango sem gosto, mas ótimo de se tatear e de se ver, de se notar e de sentir, a opção de uma vida mais leve.
O cenário era fabuloso. O sol estava na altura exata a iluminar aquele corredor do terceiro andar, através das longas janelas e do piso refleto tal qual lago em calor de verão.
Tenho esta imagem de estar sentado, o tal sanduíche em minha mão direita e água engarrafada – garrafa minha, antiga, não recém-comprada – em minha mão esquerda. De ver os estudantes cruzando o corredor como uma passarela do saber, exibiam em suas faces a maravilha do conhecimento, a aura da sabedoria.
E foi então que contemplei tal momento de luz: A compreensão dos meus caminhos. Pude ver por meus jovens olhos toda a minha vida, e todas as minhas escolhas até então, e todas as minhas sinas. Pude observar as diversas pessoas com quem tive conversas especialmente memoráveis, eventos os quais me fizeram sorrir ou chorar. Meu coração estava como nunca em meu peito, e eu podia sentir seus cortes passados, alguns já em cicatriz, outros procurando ainda cura.
Mas eu estava lá, naquela hora, naquele lugar, e pude sentir todo o fluxo do tempo como se fizesse todo o sentido. Não era porque eu tinha aula de desenho naquele andar, ou porque naquele dia eu precisasse almoçar e um alimento se destacasse especialmente entre outros a mostra. Era porque eu havia condicionado minha vida até ali.
Como foi belo a compreensão! Pude ver todos os traços de memórias levando-me àquela instituição, àqueles meus amigos que tão longe fisicamente estavam mas tão perto em meu coração estavam presentes! Eu pequeno, eu jovem, eu adulto, era somente um eu. Traçado através de tanto tempo a estar naquele momento, observando o sol e comendo um sanduíche natural e bebendo água engarrafada!
E então todas as minhas escolhas receberam a dádiva do perdão, pois eram elas que me levaram até ali, eram elas que me faziam ser eu, mais do que qualquer outra coisa. E naquele lapso da minha rotina – que então pareceu a mais bela das ordens e dos períodos – pude sentir o futuro convidando-me a seu festivo encontro. Mais que isso, pude sentir os traços de carne viva em meu íntimo das dores que eu havia causado e sentido através dos anos, aliviarem-se pela conclusão de que eu era naquele momento, à minha própria forma, completo. Amado, acima de tudo, por mim, que desenhara através de linhas tão sinuosas e embaralhadas, que talvez nem eu mesmo compreendesse seus resultados finais, a vida mais bela. A minha vida. E tudo fez sentido, e tudo fez-se luz.
Raios poderiam partir-me em dois ou três. Naquele momento, meu sorriso não seria quebrado nem pelo mais forte impacto; meu coração, bateria forte e vívido até se tivesse somente a terminal condição de parar sua bateção repentinamente. Eu era completo e perfeito, a meu próprio modo, e nada poderia tirar isso de minha posse.

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sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Sobre túneis e navalhas.

Falho em controlar minha memória,
expulsar dela as sete páginas de frustrada tortura.
Meu bem mais precioso e inigualável.

Houve espaço em meu pequeno coração,
esfaqueado,
para guardar em ironia tal lâmina?
Como pude, de tantas jóias e preciosidades, guardar-me justo disto.

“Sete páginas”, penso.
Deveria ter presumido então ser o bastante para derrubar-me agora.
Mas não,
certamente não é.

Ferrugem e desgaste a corroera.
Ferrugem do tempo e da invulnerabilidade,
que hoje me assombra.
Impedindo-me de ter o desejo sofrido de sofrer!

Minha relíquia não pertence ao passado, não.
Passado é pai do presente, mas parece tão desconexo, tão pobre e longe.
Mas é passado o que há em meu coração e em sua pequena navalha.
Passado e nunca mais passará, nunca mais arderá, e nunca mais maravilhará.

Nunca mais queimará no íntimo de meu ser,
as mais miseráveis escolhas e caminhos,
que me levaram àquele túnel negro de tristezas.

Pois sempre houve uma saída ao breu,
a qual neguei inutilmente por tanto tempo seus poderes de cura.

Mas, que minha lâmina agora, sem corte, refresque meu coração,
pois,
há de bater novamente em excitação!

Há de haver paz na luz após a penumbra.
Onde a navalha servirá, sim,
a um propósito justo à sua existência:
Será meu bem mais precioso não em dor, e não em torpor.
Mas em lembrança.

E que nesta paz, novamente há de ferver em meu ser
os demônios que fizeram-me guardar minha tortura.
Há de haver uma segunda chance à melancolia.
Pois seria um túnel demasiado curto,
caso não houvesse volta à sua atraente escuridão.

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segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Metáfora de homens e seus unicórnios (crônica em primeira pessoa).

Atenção: Este texto não foi passado por nenhum instrumento de censura e pode constar na lista Index Librorum Prohibitorum*.

Digamos que um dia eu afirme ter visto unicórnios. É irrelevante se eu vi ou não, eu convenço pessoas de que vi.
Isso é questionável?
Afirmo então acreditar na existência – impossível de se provar – dos unicórnios. É irrelevante se eu acredito ou não, eu convenço pessoas a acreditarem também.
Isso é questionável?
Logo, eu clemo que os unicórnios são superiores a nós humanos, são seres míticos, e que devemos idolatrá-los. Acreditando ou não eu nisto, faço com que outros acreditem.
Isso é questionável?
Passo a fundar locais de adoração aos unicórnios, funcionando em conjunto com a sociedade em volta dos mesmos. Trazendo cada vez mais pessoas ao culto.
Isso é questionável?
Afirmo que para o mantimento de tais estabelecimentos é necessária a contribuição monetária dos indivíduos os quais participam de seu culto.
Isso é questionável?
Não há prestação de contas, o capital pode vir a tornar-se excessivo.
Isso é questionável?
Em tais estabelecimentos, pessoas – que podem ou não acreditar em o que estão a fazer – são nomeadas por mim portadores da voz dos unicórnios, e tal classe social diferencia-se do cidadão comum e mesmo do participador do culto.
Isso é questionável?
Além de nomear os portadores de voz, também me sinto no direito de afirmar escritos de minha escolha como sagrados dos unicórnios. Acreditando ou não nesta identidade sagrada.
Isso é questionável?
Regras são criadas através da palavra – oral ou escrita – que digo serem dos unicórnios. Tais regras configuram a contribuição financeira ao culto como regra e percentagem da renda do membro; e regularizam o seguir de dogmas, verdades absolutas que não devem ser questionadas.
Isso é questionável?
Os dogmas servem como julgamento das atitudes dos humanos.
Isso é questionável?
As pessoas as quais nomeei serem portadores da palavra dos unicórnios são, por decisão minha, obrigados a manter uma vida sem uniões conjugais públicas. Sendo tal decisão para manter a herança destes como capital para meu culto ou não.
Isso é questionável?
Tais pessoas passam então, por não poderem satisfazer-se sexualmente com cônjugues legítimos, a abusar sexualmente de jovens de diferente ou mesmo sexo.
Isso é questionável?
Protejo tais pessoas do código judicial da sociedade de fora do culto aos unicórnios.
Isso é questionável?
Por apreciação a esta proteção, a recrio com o nome de Liberdade Religiosa, protegendo a privacidade de legalidades ou ilegalidades que ocorrem na adoração aos unicórnios.
Isso é questionável?
O culto se passa para a maioria da população. A palavra “unicórnios” passa a ser gravada com letra inicial maiúscula. Torna-se natural de um membro da sociedade ser adorador dos Unicórnios.
Isso é questionável?
O costume da crença passa a replicar-se hereditariamente. Crianças sem poder de decidir judicialmente sobre si mesmas são criadas na esfera do culto aos Unicórnios.
Isso é questionável?
Além das crianças, também convertemos povos indígenas para o culto.
Isso é questionável?
Questões científicas da sociedade, trazidas a tona por não-membros ou membros do culto entram em conflito com os dogmas estabelecidos. Portanto eu inicio um movimento público contra tais cientistas.
Isso é questionável?
Este movimento torna-se violento.
Isso é questionável?
A esfera já citada do culto aos Unicórnios engloba também escolas, colégios e universidades, mesmo estando em conflito dogmático direto com a ciência.
Isso é questionável?
Do dia para a noite meu culto dos Unicórnios ganha proporções multicontinentais. Filiais de meus estabelecimentos abrem-se em todos os cantos do mundo humano.
Isso é questionável?
O capital que gira em minha instituição é exagerado. Sobra-se dinheiro de todos os lados, e não devolvemos este dinheiro para a sociedade.
Isso é questionável?
Interesses de capital se acumulam, financiamos empresas, instituições, ideais, partidos políticos.
Isso é questionável?
Conflitos de interesses causam conflitos armados, inicio guerras em nome dos Unicórnios.
Isso é questionável?
Por fim, a ciência sobressalta seus impedimentos por mim criados. A sociedade não tolera mais a perseguição às pessoas do saber. A perseguição acaba, mas não há justiça feita a seus antigos promovedores.
Isso é questionável?
Além da justiça não ser cumprida, as escolas, empresas, e centros de conhecimento em geral geridos ou financiados por meu culto mantêm-se em funcionamento. Mantêm-se, naturalmente, conflitos de idéias em tais locais.
Isso é questionável?
Todo o capital do mundo é taxado de impostos, porém não o nosso.
Isso é questionável?
Com a taxação deste capital seria possível um retorno à sociedade, benfeitorias às comunidades. Porém isso não ocorre. Além disso, uso este dinheiro livre de impostos para financiar organizações de terceiros, e algumas minhas, e fazemos fortuna.
Isso é questionável?
Enfim estamos no século 21: Pessoas só são responsáveis por suas atitudes a partir dos 16 ou 18 anos, variando pela legislação nacional, mas ainda introduzo idéias em cabeças de crianças, e rituais de meu culto antes das mesmas possuírem a liberdade de escolher sua participação ou não; Meu culto age em países de grande miséria, e o capital que naquele gira ainda não passa por impostos, e ainda atuo por regras de recolhimento rígido dos membros de meu culto; Meu culto ainda entra em conflitos com a ciência, mesmo que esta já tenha conseguido explicar muito do funcionamento do universo e da vida, e ter comprovado errado cientificamente diversos dogmas por mim e meu culto apresentados; O capital do culto aos Unicórnios ainda financia instituições de conhecimento e corporações, e além disso tais organizações geram lucro ao mesmo; A ética ainda é colidida por meu culto, continuamos a julgar pessoas por dogmas por nós mesmos criados, direta ou indiretamente.
Isso é questionável?

Onde está a linha? O que está a ponto de ser julgado certo ou errado?
O quanto de tudo isso pode ser questionado? Mas além disso, o quanto deve ser questionado?

É preciso explicar a metáfora? Creio que não. Seguidores e devotos de "unicórnios" estão por todos os lados, e pessoas e organizações que se aproveitam destes seguidores também. Muito além de personagens históricos ou atuais, sou a personificação do medo primordial - do fim existencial -, da solidão e da depressão humana.

* Index Librorum Prohibitorum: Lista de publicações proibidas pela inquisição por heresia, "deficiência moral", "sexualidade explícita", "incorrecção política" etc. Contém obras de Galileu Galilei, Nicolau Copérnico, Nicolau Maquiavel, René Descartes, Rousseau, Montesquieu, Voltaire, entre outros; abolida em – pasmem – 1966.

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quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Memento* em forma de carta.

O motivo pelo qual sento hoje e escrevo é simples: Não quero deixar-me esquecer.

Pode parecer normal tal desejo, mas certamente ele não o é quando se trata do assunto pelo qual escreverei. Comecemos do início:

Há um ano e poucos dias, houve para mim o fim de uma Era. Quem nunca se apaixonou pode indelicadamente não concordar com o que direi, mas a verdade é simples e curta: três meses são uma vida quando bem vividos. E estes três meses acabaram-se em três ou quatro dias. Não sei ao certo. Talvez meu desejo de consciência memorial seja recente. Talvez, não, certamente é recente.

Leio hoje um trecho do pior tipo de literatura, a fictícia, onde a dor de um fim chega a ser física de tão destrutiva e imobilizante. Isso faz-me lembrar de meu fim, da época já citada.

Se um dia nos questionarmos o que é a vida, não será a resposta sobre energia dada por um físico que nos trará esclarecimento, tampouco a resposta fria da biologia. A vida na realidade é um conjunto de memórias. Só isso. Um mero conjunto de memórias quimicamente propulsionado a continuar arrematando memórias. Memórias sensoriais, emotivas, de todos os tipos.

E eis que pergunto-me, se deixarmos pouco ou muito desta herança do tempo que nos é dada desvanecer-se, não estaríamos perdendo o pouco da vida que temos? E se somos os únicos a tê-las, não somos criminosos em ética ao perder tal patrimônio? Certamente... Mas, e se tais memórias são as tristezas mais fortes e destruidoras, perdas inimagináveis ou desgraças absurdas? São ainda a nossa vida, que estamos perdendo, ou estamos a criar a verdadeira vida deixando tais podridões de lado?

Não posso ignorar, apesar da força que tal conscientização implica: ainda me recordo da época sombria da qual irei relatar como sendo eu o sofredor de sua desgraça, e ninguém mais. Sou eu o recebedor do presente do lamento e da melancolia, então devo guardá-lo como um bem tão precioso quanto minhas memórias mais belas e graciosas.

Enfim, enquanto digiro a literatura da dor mental-física, pergunto-me quantas pessoas ao ler tal obra perguntam-se intrigadas se perderam algo importante por não terem sentido desgraça semelhante em suas vidas. Inúmeras, presumo.

A verdade é que não é uma dor física. Não é passível de torpor. E não é adiável. É terrível, mas é rápido; é aterrorizante, mas no fundo é libertador. É a pior coisa que se pode sentir em uma vida de loucuras emotivas, mas é ao que nos agarramos no fim. Esta é a verdade.

Quero que entenda, e que se lembre, ou que possa imaginar: Era o mais terrível dos vazios. Incomparável com qualquer depressão repentina, é avassalador, e age no primeiro minuto do dia, quando se acorda. Os olhos se abrem, os sonhos se desvanecem e a realidade chega em um baque: Pou, e tudo vem a tona, esmagando-o.

Você não pensará neste momento no prazo do seu trabalho escolar a entregar, ou do pagamento do seu IPVA ou qualquer coisa do tipo. Você só pensará nos olhos dela. E no seu sorriso. E isso já é o suficiente para fazê-lo querer poder jogar-se para trás e adormecer o dia todo para ver se no dia seguinte estará tudo acabado. E você sabe que não estará.

Não sei por quanto tempo esta fase durou. O baque de manhã é o pior elemento desta depressão, sem dúvida, pois você tem uma vida além daquilo que perdeu, é inevitável. Seu IPVA e seu trabalho escolar ainda estarão lá independente da vontade sua de que nada mais exista, ou de que magicamente o tempo volte atrás e que você possa mudar uma palavra ou outra que tenha dito.

Pois bem, os diálogos são os que mais atormentam. Disso talvez se lembre, de como os diálogos simplesmente repetem-se até o ponto em que não se pode mais saber a diferença entre o que foi dito e o que você desejava que tenha sido dito.

E os diálogos o perseguem, e você dorme. E você acorda se sentindo uma merda, e os diálogos retornam às vezes com imagens, a visão é sempre o sentido mais traidor. E passam-se dias, e semanas. E quando você acha que está mal, os finais de semana chegam e o ócio te derruba como o atropelar de um monstro que você sabe que esteve toda a semana te esperando; ele estava na espreita.

Mas os dias passam, as semanas passam, e sua atenção irá se prender a outras coisas. Não preciso dizer as datas que seguiram ao meu fim, não é verdade? Pois na verdade é o nosso fim, porém, está tão longe de mim agora, tão seguramente e pacificamente longe de mim, que creio que esteja desaparecido para você velho tolo. Não jogue partes de sua vida fora, lembre-se disso, nem se esta possua momentos os quais você julgue merecerem poda.

Pergunto-me se ao ler essas palavras conseguirá lembrar-se daquela velha cama, daquele velho quarto, e lembrar-se dos vazios das manhãs, ao menos. As memórias dos diálogos, e essas coisas. Só há algo pior do que a tristeza: O vazio que a substitui quando se quer esquecer. Lembre-se disso.


Com amor, admiração, e forte desejo de conhecê-lo,
Aquele que fez uso do que veio a ser seu corpo, e que abrigou sua mente, há tantos anos.

*Memento: Agenda onde se escreve tudo o que não deve ser esquecido.

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domingo, 2 de agosto de 2009

Moça do vestido florido.

Que de mil véus seja seu leito de descanso,
após injuriar-me com a mais bela das danças.
E a mais nobre das posturas.

Flamenco minha alma,
e arrasa em sapateio meus sentidos,
por entre passos que meus olhos falham em compreender
mas sucedo sempre em sentí-los.

Do vestido florido, que me faz hipnotizado,
visita-me em sonhos, em situações indescritíveis.
E que vivas sejam as flores, no traje que acompanha
todos sua graça e todos seus movimentos.

Por que, pergunto-me, sinto-me o mais honrado
ao poder ver a magia de seus passos, como se os fizesse para mim?
E também, por que me considero o mais inafortunado dos homens
vendo a mais bela das criaturas,
sem poder nem mesmo tocá-la ou compreendê-la.

Vejo uma dança, a qual não está no futuro nem no passado,
onde leves-me à intensidade que realiza seus jogos de graça.
Unidos, somente um, em um palco de poucas luzes.

A beleza é fraca, é fútil e traidora.
Mas a beleza do movimento da moça do vestido florido...
É surreal, é magestral.

Quem sou, que creio um dia poder dividir uma rumba qualquer,
com a moça do vestido florido?
Há todo um universo entre minha realidade,
e a dela,
onde tais flores fazem-me sempre fascinado.

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domingo, 26 de julho de 2009

Ensaio sobre o mundo de luz.

Existe um mundo além deste que conhecemos. Bastante similar ao nosso, porém cujas pessoas nascentes são diferentes, especiais. Diferentes dos humanos terrestres, estes se ligam fortemente em sentimentos uns aos outros, e carregam em suas falas e atitudes distintas a sabedoria e a riqueza de vidas bem vividas. Andam em passos leves, sobre seu mundo de igualdade. Não há guerras, não há miséria ou maldade. Este é o mundo da luz.

Eventualmente, porém, há um acontecimento mágico. As pessoas de luz enviam para nossa terra de tristezas e morte uma destas pessoas para ventre humano. Nascem e crescem tais enviados, tentando se adaptar ao nosso mundo. Líderes, revolucionários, pessoas brilhantes, pessoas simples, pessoas especiais.

Me recordo de uma pessoa de luz que um dia conheci. Em seu jeito único, apegava-se muito a sentimentos e possuía a mais brilhante das falas. E em seu triste olhar podia-se, com certo empenho, ver o universo que separava a luz de nosso pequeno mundo. Oh, com aquele olhar era possivel vislumbrar a realidade que perdemos de habitar, de pessoas cujas almas merecem o maior dos confortos.

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segunda-feira, 20 de julho de 2009

Anjos.

- Então - ela hesita por um momento -, é que você não acredita em anjos?
Ele sorri.
- O que estou tentando dizer pra você, é que nunca me importei com essas coisas. Nunca. Nunca imaginei eles existindo ou o que for.
- E?
- E quero dizer que... Bom, que se há anjos, ou criaturas místicas quaisquer, alguma delas está sorrindo agora, chorando de felicidade. Por essa noite. Por o que me foi presenteado. Com certeza.
Ela sorri, passa levemente a língua pelos lábios superiores e o beija rápido mas intensamente.
- Agora, por trás do meu ceticismo, consigo ver, sentir. Isso é algo, algo importante, para mim, para nós. É um nascer do sol.
Ela o beijou novamente. Não entendeu muito do que ele quis dizer, mas não se importava. No fundo, ela também sentia como se algo grande estivesse ocorrendo.

*

Em um outro canto da cidade, um garoto alternava entre sentar no chão apoiado contra a parede roçando a testa e andar de um lado para o outro do quarto como se estivesse perdido.
"Não é mais a mesma coisa. De jeito nenhum. Nunca mais será o mesmo entre nós. Por que ela foi agir daquela forma? O que devo fazer?" Divagava o garoto.
A noite terminou com ele irritado mandando mensagens grosseiras pela internet. E se sentindo satisfeito. Somente para nos dias, semanas, seguintes arrepender-se de suas atitudes e entrar em um estado depressivo.

*

Já em outras atmosferas:
- Quantos grandes amores eu tive? Bom, quantos destes temos direito a ter na vida? - Sorriu de leve o homem.
A mulher com quem conversava era alta, de corpo bonito e rosto bem conservado. Era a situação com a qual ele imaginava desde jovem. Uma vida de dedicação, esforços, uma vida dentro das regras, para crescer em um homem atraente, de sucesso, desejado, em uma festa de alta sociedade, com as melhores mulheres e todas à sua "escolha".
- Eu diria que três. - Respondeu a moça.
- É, essa é uma pergunta interessante. Eu ensaiava respostas para essas perguntas quando mais moço. Creio que pensar em um amor perdido como um número a mais em algum contador que se usa em conversas com mulheres deve ser reconfortante. - Sorriu de leve, com ironia. - Mas acho que talvez zero seja a resposta apropriada. Fui solteiro toda a minha vida.
- Solteiro toda a sua vida? - Perguntou a moça com uma mistura de "quase surpresa" com graça.
- Se estou com alguém, apaixonado, ou o que for, mas não posso mostrar meu eu verdadeiro para essa pessoa, qual é o nome disso? Eu diria que é solteirice. Nada mais que solteirice, e não deve ser amor, um grande amor.
Ela sorriu. Ele sabia que a tinha conquistado com aquelas palavras. Por mais que este não tenha sido seu objetivo em dizê-las.

*

O homem termina sua janta e então desce as escadas para a sala de estar.
"Como se acabou tão rapidamente? Não posso culpá-la, concordo que não era mais como antigamente, mas ainda assim. Como?" Pensava.
Estava nos seus vinte e tantos anos. Em uma casa de um milhão de reais. Vazia. Escura.
Cadê os anjos agora, que o amor se foi? Estão o quê? Brigando? Tristes?
Bebeu um copo de whiskey, só para lembrar de quanto odiava tal bebida. Tragou um caximbo. Andou um pouco evitando o sono. E então foi dormir.

*

O menino acorda com o aviso sonoro de uma mensagem de texto em seu celular.
"Amo você. Muito..."
Sentiu-se a pessoa mais feliz do mundo. Queria manter aquele momento para sempre. Aquele sentimento, para sempre.

*

Todos são o mesmo garoto-homem, onde o tempo não existe. "Onde estariam os anjos", ele se perguntava sazonalmente em sua vida.
Onde?
Onde estariam os anjos?

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sexta-feira, 10 de julho de 2009

The man who sold the world*.

A burguesia é certamente a mais egoísta das drogas.
Denis estava naquele momento, alucinando com outras que não eram a já citada, e sabendo que para voltar à mesma este teria de esquecer aqueles dias de loucuras alucinógenas, enterrá-los no passado. Mas naquela hora ele estava apenas aproveitando seus efeitos.
Em algum ponto nosso protagonista notou que as pessoas à sua volta estavam falando de suas infâncias, sobre como foram mágicas e incríveis e inigualáveis. Refletiu então que ele não havia tido uma infância tão boa, aliás, sua infância foi bastante triste, vazia.
Denis voltou em pensamento à escolinha onde estudara quando tinha poucos anos de vida. Lembrou-se das crianças ao seu redor, de como era sozinho no mundo, e então recordou-se de que em certos momentos, quando se sentia a criatura mais desprezível já criada por Deus ou quem for que fosse, Denis garoto subia em uma grande árvore de sua escolinha, e então observava. Observava a seus colegas como um anjo do desprezo, procurando a menor falha, a menor tristeza, e as encontrava. Sabia decerto onde ver as crianças felizes chorando ou lamentando. Quando ele se cansava, afinal, se sentia poderoso, e dizia baixinho para si mesmo: "Sou o mais poderoso dos homens". Pois se sentia assim.
*
Denis formou-se bacharel com louvor, e como previsto teve de deixar sua vida de bohêmio para trás, e todas as suas especiarias. Com trabalho e mente afiados, criou fortuna a partir de uma série de empresas criadas em sua liderança, de diversos ramos da tecnologia moderna.
Certa vez, Denis já homem de grandes especialidades, viu-se tornar um empreendedor no frio negócio de armamentos, o que não o encomodava particularmente.
Em uma transação com um grande consumidor de suas atrocidades, Denis foi presenteado com um vídeo de suas armas em ação, pulverizando aldeias de um povo de região qualquer da África.
O empresário chegou à sua luxuosa residência aquela noite com uma vontade estranha, e altamente ansioso. Cumprimentou sua mulher, seus filhos, e dirigiu-se a seu jardim particular.
Não havia ali grandes árvores, sequer altos arbustos. Denis sentou-se em um banco de madeira, e ligou seu gadget de bolso para assistir ao vídeo de suas criações em ação.
Entre as incontáveis mortes e a destruição que assistia, sussurrou para si mesmo: "Sou o mais poderoso dos homens".
E era. Naquele momento ele era.

*"O homem que vendeu o mundo", trecho da música homônima de David Bowie.

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domingo, 14 de junho de 2009

Aquela velha situação.

Ah, ele sabia de todos os sintomas. Ele até sabia como tratá-los.
Naquela tardezinha de sábado ele ligou seu computador e iniciou uma música, alegre porém não excitante, parada porém não depressiva, e ligou MSN, Orkut e toda e qualquer forma de pseudo-comunicação a seu alcance.
Às vezes nos encontramos velhos demais para dizer a deslavada mentira de que "feriados me deixam depressivo". O que podemos fazer? Talvez alguns não saibam tal resposta, mas ele sabia - ou achava que sabia -, portanto, para não chegar ao corajoso ato de disparar um projétil entre os próprios olhos, começou sua pequena rotina.
Riu, "conversou", assistiu a um filme ou dois, e evitou ao máximo pensar efetivamente no que deveria ser pensado, tentando evitar a melancolia.
Mas algo o dizia que ele sabia, estava arruinado.
Não se sentia mais uma pessoa, um ser existente. O que havia acontecido à sua vida? Pensou.
"Como tudo mudou, de uns tempos pra cá", dentre outras afiadas sanidades.
O tempo não parecia passar, sua vida, não parecia passar.
Clicou no seu programa editor de texto e digitou as seguintes palavras:

Não, não estou morto.

Nada menos, nada mais. E as observou por alguns minutos.
O que podemos fazer? Afinal, era feriado.

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sexta-feira, 22 de maio de 2009

Preciso escrever-te.

Preciso dizer-te que, desde já, te amo.
Desde já, és parte de mim,
parte de tudo o que fui e que serei.

Preciso dizer-te, que sempre admirei você.
Tenho as melhores idéias de ti,
as maiores ambições.

Preciso, acima de tudo, dizer que te entendo.
Melhor que ninguém,
entenderei porque evitarás diversão por momentos pensativos,
preferirás momentos solenes ouvindo uma música especial a outros quaisquer.

Entenderei sua forma de olhar com análise.
Seu jeito analítico será para mim sua maior proeza e nunca uma falha.
O que você ver do mundo,
será também o que estarei vendo por meus olhos.

Entenderei, acima de tudo,
quando olhares para mim e eu "ler"
"eu não deveria estar aqui".
E também quando sua boca esconder e seus olhos disserem-me
"nada mais posso receber de você".

Entenderei, também, suas noites assombrando-me,
caso nunca vires a tomar o corpo de alguém que poderia ver indiferença,
onde tu verás desespero,
tanto, tanto desespero.

Noites em que você visitar-me-á com ódio,
mas nunca odiarei você, filho, nunca.

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segunda-feira, 11 de maio de 2009

A vida após a morte não utópica completamente utópica.

Estava eu a conversar com uma amiga pela internet discutindo o assunto descontraído normal de qualquer pessoa regular: O fim da vida e a existência humana; quando iniciei a dissertar sobre o que seria o pós-vida ideal, que inicialmente seria algo não utópico, diferente das visões atuais de céu e inferno.
Com tal premissa, a criatividade me levou a projetar o que para mim, é o pós-vida, o modelo de existência ideal:
O Eterno Aprender.
O Eterno Aprender consiste em uma coexistência de eternidade e finitude, materialidade e espiritualismo exacerbado e impossível de se provar através da razão. Minha "proposta" é que ao fim da vida humana se termina um tempo de existência vivente, voltando a uma existência espiritual onde todos os mistérios do universo e de tudo o que se pode e não se pode imaginar, muito além do mero conhecimento humano, é dado para quem quiser estudar, absorver imensurável conhecimento, tendo o espírito o poder de saciar toda a curiosidade humana, sem dependências biológicas e sem interesses humanos de reprodução ou sociabilidade. Uma existência dedicada a absorver em um compartimento superior ao cérebro humano e aos canais de mielina uma quantidade literalmente infinita de conhecimento, sendo tal aquisição o único prazer dos espíritos.
As "bibliotecas" magistrais de conhecimento são privadas do conhecimento puramente sensorial de organismos de nossa galáxia ou de outras. Portanto, quando espíritos dedicam-se ao ato de conhecer algo em particular, estes têm a oportunidade de invocarem-se em criaturas diversas do universo - iniciando existências viventes - que já viveram ou ainda virão a viver; pois o tempo na existência espiritual não é trabalhado e compreendido como pelos seres humanos, e estes seres então, tomam corpos de variadas criaturas que estão a nascer, amebas, plantas ou animais terrestres, ou criaturas inimagináveis pelo ser humano que habitam o universo; sempre, ao morrer novamente em suas vidas, nutrir o universo com a energia do conhecimento adquirido, porém, não possibilitando tal conhecimento para os outros espíritos, que terão também de encarnar em seres viventes para compreender sensorialmente suas existências.
A força superior, se existir, é a entidade que absorve o conhecimento espiritual obtido em existências viventes pelos finitos espíritos existentes. Não seria algo condicionado a uma só forma de vida ou a um gênero, ou espécie, seria algo abstrato até mesmo para os espíritos, o único verdadeiro mistério para os espíritos imortais.
Tal existência infinita, porém, é condicionada a cada espírito optar por perder o conhecimento universal adquirido ao nascer em um ser vivente, portanto sem memória estes adaptam o infinito à compreensão finita.
O Eterno Aprender seria algo surreal, abstrato demais para ser compreendido por humanos ou pela ciência, tampouco geraria humanos de fardas ganhando dinheiro por citações de livros sobre tal teoria.
Ofereço uma teoria do que seria uma infinidade não tediosa, por assim dizer, e também não ligada à forma humana, que é apenas um dos infinitos seres viventes do universo, e não requer sua pós-vida julgamentos dos espíritos quanto a atitudes quando humano e sujeito à forma humana de pensar e se organizar em sociedades. Os espíritos, nós, teríamos apenas o julgamento próprio quando atingíssemos a verdade plena e o conhecimento absoluto, sendo a ética humana de meros milhares de anos de história apenas uma parte infinitesimal do conhecimento sobre o relacionamento entre espíritos e o que os cerca, nas existências viventes e na existência infinita espiritual.

É basicamente isso. Pretendo voltar a atualizar o Divagações e terminar após meses de intervalo muitos contos inacabados.

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