sábado, 19 de setembro de 2009

duas notas de dois e uma de um.doc

Farei-me curto e objetivo. O que menos quero é acordar minha amada ou alguns de meus agora já não tão pequenos pequenos. Algo em minhas memórias despertou-me de meu início de sono, e terei de carregar um par de olheiras e fadiga amanhã para ter a certeza de que farei aqui meu memento bem escrito. Trata-se de um momento em minha juventude, um acontecimento que pode ser considerado comum, porém quiçá o presságio de uma vida mais justa.

Era algum momento de 2008. Havia inscrito-me para um vestibular o qual não poderia aproveitar sua vaga por motivos de idade, e aquele era o dia de sua prova, em algum bairro afastado de minha residência da época em Curitiba. Após a prova, dirigi-me a um terminal de ônibus, não me lembro qual, me lembro apenas de seu caos naquele dia.
A fila para a entrada no terminal por pouco não o circumpletara por completo, de gente jovem de aspecto violento. Pus-me nesta fila, e tentei fazer-me acostumado ao cenário. Lembro-me de que atrás de mim garotas, as quais não aparentavam mais de quatorze ou quinze anos, conversavam demonstrando tal efeito de drogas alucinógenas que só o escutar daquela conversa débil já era estonteante. Uma delas havia perdido o celular. Pouco importara.
Lembro-me de que em certo momento, um ônibus teve de buzinar e dar ímpetos de atropelamento para cima do povo, em busca de uma oportunidade de acoplar suas rampas e portas em um tubo do terminal. Com as portas abertas, recordo-me de que em poucos minutos cerca de quarenta, cinquenta ou cem garotos e garotas pularam por tais para evitar pagarem a passagem.
Quando finalmente cheguei à entrada, podia ver medo e tensão estampados nos rostos dos cobradores da passagem, que nada podiam fazer caso um grupo de criminosos os assaltasse. Lembrara-me de ter duas notas de dez reais na carteira, tirei uma nota e entreguei sem nem vê-la, e ao receber o troco correspondente ao valor de cinco reais, levantei objeção ao funcionário em minha frente.
Serei sincero: Não me lembro das palavras, se é que houveram palavras. Mas me lembro daquele rosto. Suas feições espalhavam-se por toda sua face estampando em letras garrafais “ladrão”, “oportunista”. Seus olhos metralhavam-me como a personificação da espada da justiça. Recebi cinco reais de suas mãos - duas notas de dois e uma de um - amassadas e entregues tal qual veneno a filho de sangue, com um asco, por parte do cobrador, indescritível.
Não pude andar mais que vinte metros. Perguntara-me se eu possuíra anteriormente realmente duas notas de dez reais. Havia as visto na fila com tamanha rapidez que facilmente poderia ter cometido um engano. Além disso, por mais que eu não tivesse dito a verdade, na situação do cobrador seria natural que ele desse o dinheiro, mesmo que relutante.
Retornei ao homem dos olhos de julgamento e perguntei-o se realmente o havia entregado uma nota de cinco. Ao receber a temida resposta negativa, entreguei em olhos de humildade as notas roubadas de dois e de um.
Ah, sim. A palavra ladrão já constava anteriormente no meu dicionário como a de um desmerecedor, de um ser sem escrúpulos, da ralé da sociedade, mas foi somente naquele momento que a senti em realidade.
Talvez seja tal simples equívoco de cifras, que tenho em meu histórico oportunidades corruptas relevadas e opções políticas questionáveis deixadas de lado. Talvez somente um olhar acusador foi o necessário a levar-me hoje a ser a pessoa honesta que sou. Não sou presidente da república, não sou grande personalidade política no quesito influência. Mas sou limpo, e o sou com o orgulho do homem que já viu o reflexo de uma corrupção de moral – uma corrupção por engano, mas ainda corrupção - em sua consciência.
Amanhã terei de ir à câmara e depois fazer outros compromissos de cunho persona publica até bastante tarde. Espero que Fernanda não se deprima por eu chegar a sua formatura tão tarde. Afinal, não posso deixar os olhos daquele cobrador fitarem-me. Não novamente.

Nota publicada por: Fer. Matos
- Encontrei este arquivo entre as pastas de papai. Salve-o contigo, creio que gostará de ler. Não é justificativa para suas atitudes, mas, sinto-me tocada por suas palavras. Papai sempre foi uma pessoa complicada de se entender. Pergunto-me se ele iria se “deprimir” se eu também faltasse a seu enterro. E se estou sendo muito dura com ele.

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Um comentário:

Monologuista Acompanhado disse...

Não pude deixar de abrir um sorriso e ensaiar uma gargalhada na parte em que tu referiste-se a garotas drogadas.

Até agora não entendi as contas possíveis para voltar de troco cinco reais... isso é o de menos.

No mais, que bom que a consciência não permite o sono dos seres humanos, às vezes isso pode trazer benefícios, de exemplo, a inspiração.

Falou, guri.