segunda-feira, 30 de junho de 2008

Dissertação para tempos inferiores - Terceira Parte.

Primeira Parte.
Segunda Parte.

Falei tanto de vocês e não falei de nós. Basicamente a solução para os problemas de seu modo de produção foi que a hereditariedade seria cortada completamente, sabe. Por exemplo, hoje um casal pode ter filhos tranqüilamente, mas os filhos não são propriedade e escolhas deles, são do Estado Maior. É um mundo justo sabe, o cidadão recebe seu cargo, seu capital e seu prestígio através de somente suas próprias conquistas. Tenho pena somente dos marginais, esses são os que acabam por ser considerados sem capacidade para trabalho, meu padrinho (estudante mais velho que aconselha um mais novo) diz que ao tirar o direito de trabalho de um homem ele está se tornando um bárbaro, mas se isso realmente é anti-ético é só questão de tempo até mudarem para uma nova legislação que seja ética para com os marginais, pois como nossos mestres dizem o nosso Estado é completamente maleável, e por isso que ele é tão correto.
Povo de 2010, há uma palavra de sua época que diz muito sobre o que está ocorrendo por aqui: conspiração. Pelos grandes corredores e pela comunicação inter computadores cada vez mais e mais há mensagens antigoverno, antiestado, sabe, que dizem que nossa ração é cheia de antidepressivos que nos debilitam mentalmente e que a vida fora de família é somente para fortalecer o Estado. De um lado temos revolucionários querendo mudanças e de outro nossos mestres falando que isso tudo é passageiro, já eu acho na realidade que não há perfeição, não há sociedade perfeita, então mesmo essa tão bem aperfeiçoada terá de lidar com algumas revoluções periódicas, mas essa é só minha opinião.
Nos dizem em aula que em sua época turmas chegavam a ter menos de 50 alunos, incrível, e que todos os alunos, mesmo os mais e os menos inteligentes, iam para a mesma sala de aula, não eram separados, me pergunto como isso é possível! Atualmente há uma taxa de aptidão mental, onde eu tirei 74 e acabei indo para a turma de nível 4 (ao total são 5 níveis) e depois disso você recebe uma numeração, como já disse sou o 68, de 430 alunos. Dizem que o maior símbolo da perfeição de nossa sociedade é a capacidade intelectual dos estudantes, mas acredito que na época de vocês, alunos de 8 anos (como eu) sabiam tudo o que eu sei, talvez até mais.

© Todos os direitos reservados.

domingo, 22 de junho de 2008

Horripilantemente perfeito.

-Quarenta e seis?
-Sim... E você, setenta e dois?
-Sim. - Responde, e brevemente olha uma foto em sua mão. Levanta os olhos à quarenta e seis de um jeito frio, com uma expressão de "entrega errada" no rosto.
-Você não parecia ter essas sardas na sua ficha. E seu cabelo parecia mais curto.
-É uma foto velha, você quer cancelar?
-Não, dá pro gasto.
Um olhar seco, porém afirmativo, e a resposta:
-Você também.

Em alguns minutos os dois desconhecidos tiram as roupas um defronte o outro, com breves olhares de fiscalização.
Após o coito a ligação foi feita: Olhares satisfeitos cruzam o ambiente, mãos sujas da mais humana das atividades se tocam.

-Foi melhor que meu último. - Diz setenta e dois.
-Ah, foi como sempre para mim.

E então há aquele momento especial, aquele sorriso misterioso, impagável. Os dois, homem e mulher, entraram em sintonia; para tanto não precisaram de diálogos fúteis ou eventos sociais. Tampouco os dois precisaram se entender, ou se complementar perante a sociedade ou perante seus conhecidos.
Aquele sorriso é tudo. Conexão feita dá início à segunda fase, infinitamente mais importante. Ambos deitados e nus, e Setenta e dois começa falando sobre o estresse de sua ocupação, sobre como tem medo de se tornar inútil. Conversa vai e vem e logo estão e falar do inacabável desespero humano, do medo da morte, da insignificância e da ignorância.
Horas fluem naquela conversa maravilhosa. Segredos indizíveis, vergonhas desumanas, mágoas avassaladoras e vontades imorais são colocados para fora como um processo mútuo de limpeza.
Acabado o desespero o silêncio traz a única - e breve - tristeza do evento: este acabara. Ao fim não se reserva beijo, abraço ou carinho, somente a gratidão e a certeza de que jamais se reencontrarão.

© Todos os direitos reservados.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Terra de rei.

Terra de rei era terra boa, terra fértil.
Terra de montanha,
de pasto,
de vila.

Em terra de rei costume era lei,
vestia-se a farda do ético, do justo.
Em terra de rei a justiça era cega,
sagaz, pertinente.

Certa vez, em terra de rei,
um homem olhou além,
além do verde.
Além das colinas.

Ao pobre homem puniram-lhe os olhos,
faca passou-lhe de lado a lado.
Povo feliz felicidade consumiu,
espada de justiça de estupidez tornou-se,
jorrando o sangue do homem que viu além.

Moça jovem esticou os braços,
além do braçal e do repetitivo,
usou-os para o novo.
Espada da justiça amputou-lhe desde os ombros.

De tempos em tempos a justiça continuava,
de membros ensanguentados e povo alucinado.

Velho sábio teve sua vez na roleta do acaso,
noites de insônia idéias o presentearam.
O velho desenrolou a sua mente como uma pasta sem fim,
traçando-lhe seu destino trágico.

Mente aberta era mente morta.
Antes da guilhotina, o velho teve seu último e sábio desejo,
como prometido, pôde conversar por horas com o rei.
Então rei agora possuía mente aberta, mente fértil.

Ao velho sobrou a lâmina e ao rei o desespero.
O rei não teve lábia ou escrita para o seu povo libertar,
jamais os ensinaria todas as idéias que agora tinha.
No cair da noite tomou seu cavalo e fugiu ao horizonte.

Povo sem rei era povo revolucionário,
ou deveria ser.
Tudo continuou o mesmo.

Justiça cega é justiça traçada, e as punições continuaram.
Convencional batalhou liberdade até o fim dos tempos,
Rios de sangue, de olhos e braços, marcaram a terra de rei;
Terra de conservadorismo. Terra de ignorância.
Terra de perdição.

© Todos os direitos reservados.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

A viagem.

"Tec. Tec."
Batia a caneta à folha em branco, como a mente de seu dono.
Onde havia esse escritor, que um dia teve exuberante fama e reputação, perdido suas idéias, suas inspirações? Encarava agora sua folha vaga, e não havia muito o que fazer contra seu bloqueio criativo.
Um tempo passa e um amigo que o observa comenta:
-Viaje, é o que você precisa, suas idéias terão retornado.
Com certa relutância o escritor segue o conselho dado...

O barulho das malas quicando no banco passageiro em cada lombada, luzes aos olhos, a estrada escura.

Certo tempo passa e nosso amigo escritor vê o farol no horizonte. E ao parar seu veículo o escritor se dirige à porta. Entrando sente um frio descomunal, que já havia sentido várias vezes. O lugar está deserto e aparenta estar sem visitas há certo tempo. Passam-se alguns minutos e o escritor continua a procurar alguém, algo.
De repente há um som forte e uma figura fantasmagórica de uma velha mulher aparece à sua frente, com a mais vil de todas as vozes:
-Que fazes aqui? Sabes que não encontrará nada! Perde seu tempo, estúpido! Volte de onde veio!

Olhos se abrem e surge novamente a voz do amigo:
-De volta? Não tem nada lá mesmo? Nada novo?
-Só aquela maldita velha... Preciso saber o que ela representa...
-Fique tranquilo amigo, tudo voltará. Tudo voltará.

© Todos os direitos reservados.

domingo, 1 de junho de 2008

Dissertação para tempos inferiores - Segunda Parte.

Primeira Parte.
Terceira Parte.

Sabe, povo de 2010, vocês serão mal vistos. Falo a verdade. Todos por aqui dizem que vocês arruinaram o planeta, brincaram com o ecossistema, a biosfera e outras coisas, mas eu não faço parte desse povo julgador. Nos falam em aulas de como vocês sabiam de tudo o que estavam fazendo, e continuavam o fazendo, e eu simplesmente não acredito! Como homens seriam tão ignorantes? Acredito que faz parte da natureza humana culpar alguém, e acabaram culpando a época mais próxima das Grandes Mudanças Ambientais (ah, só de ler novamente essa expressão já me dá um nó no estômago, vocês deveriam agradecer de não ter de estudar isso, ou pelo menos ainda não).
Não tenho muito a escrever, talvez vocês conheçam essa minha situação, sabe, preciso escrever muito em cada trabalho da Escola e imagino que em sua época fosse a mesma coisa. Bom, minha escrita é meu refúgio, sabe, às vezes eu fico pensando se a vida familiar de sua época era boa para problemas como depressão. Hoje em dia quando uma criança nasce, ela antes de ser entregue aos órgãos de estado (para ser estabelecida em um orfanato e depois medida a inteligência para ver em que turma da Escola entrará e blá blá blá...) eles a fazem passar por alguns testes genéticos, e além de ver as doenças que essa criança terá eles vêem até as doenças psicológicas, é super legal! O problema é que uma lei foi aprovada que proíbe o Estado Maior de dizer os problemas psicológicos ao cidadão antes deles se manifestarem, e você sempre fica na dúvida se você é um dos que possui o terrível mal da depressão, da bipolaridade ou do suicídio. Às vezes chego a pensar que possuo os três...
Dizem alguns sociólogos hoje em artigos de revistas (ler revistas em papel também deve ser melhor do que em telas) que a população na época de 2000 até 2015 era dividida entre os céticos e os filósofos, sabe, onde os filósofos eram atormentados por pensamentos sobre o futuro, sobre o caos, sobre a incerteza humana, suicídio e outras coisas, e os céticos conseguiam viver sem pensar em nada disso. Alguns dizem que os felizardos são os céticos, pela ignorância, alguns dizem que os céticos eram assim por escolha, alguns menos apoiados dizem até que um considerado filósofo poderia identificar outro somente pela feição de seriedade, incrível!
Sabe, mesmo que nossas grandes mentes não gostem de vocês, povo de 2010, todos se interessam por sua época. Vários são os institutos que tentam descobrir os mistérios de como vocês eram desprovidos de consciência ou pensamento crítico, dizem até que vocês eram rebaixados como povos e fortaleciam grandes empresas, que acabavam possuindo todo o poder. Bom, eu tenho minha teoria que é tudo explicado pela cultura, como que se vocês fossem acostumados a isso, e costume é algo difícil de se alterar.

Continua.

© Todos os direitos reservados.