domingo, 14 de novembro de 2010

Arte Verde - I

- Mas os operadores do barracão 4 não estão cumprindo as metas já há três meses. Repito: Três meses! - Para Fernando era engraçado ouvir a palavra "operadores" vindo daquelas pessoas, aqueles líderes desrespeitosos com eles mesmos, seus subordinados e todo o resto do mundo; provindos das mais insufladores de egos das escolas, porém que em tais reuniões se corrijiam do rude - cuspido, alguns diriam - termo "peão", ou "lacaio" (sendo o último caso para os mais cultos dos arrogantes), limitando-se ao comportado "operador".
- Essa regalia não pode continuar. - Dizia outro.
- O recursos humanos já se pronunciou, - recomeçou o homem do "operadores" - três semanas é o tempo hábil de que precisam e podemos suprir com nova mão-de-obra nossas necessidades.
Ouvia a tudo, Fernando, daquela conversa tão normal. Normal era tratar dos subordinados como peças. Normal era a recontratação em massa - curioso que não a tratam por "demissão em massa". E ele possuía um papel importante naquilo tudo, o cumpriria bem, tentaria dar um parecer para ambos os lados - os líderes que não obtinham produção e os peões revoltados. Porém havia algo de diferente, alguma memória dentro de Fernando estava prestes a emergir do denso mar do seu passado. Ainda não a via, porém algo de desconcertante estava a surgir em seus pensamentos.
- Isso contando que mantemos os líderes-dois ou os líderes-um? - Falou um dos homens à mesa.
"Ípsilons... Algo com ípsilons." Pensava Fernando, já um tanto alheio à conversa.
- O pessoal da qualidade já fez o levantamento dos que vão ficar, mas em teoria 100% dos líderes-dois e algo como 30% dos líderes-um. - Respondeu outro.
E veio a ele a lembrança em seu estado bruto. Escreveu prontamente as palavras que o acomenteram com sua lapiseira em uma folha a sua frente e leu o que havia escrito para seus colegas:
- "Até os ípsilons são necessários." - Sem obter significativa resposta, ou mesmo constatação de seu comentário, fato justificado que por essa primeira vez a frase ter saído em um tom de voz um tanto baixo, repetiu a falar, agora a pleno pulmão e olhando a seus companheiros, de forma pausada:
- Até os ípsilons. São necessários.
Nada. Nada além de olhares confusos obteve Fernando como resposta. Na verdade, falar em voz alta tal emblema o fez se lembrar de onde e quando havia enterrado tal peça em sua memória, de onde e quando havia pela primeira vez lido tal artefato, muitos e muitos anos atrás. Pediu licença para seus colegas - que encontravam-se um tanto confusos -, levantou-se de sua cadeira da mesa elíptica e dirigiu-se até o banheiro.
"Um olhar para si próprio revela mais do que cem padres e psicólogos", lembrou-se da expressão que sua mãe tanto falava, ao entrar pela porta e encarar o grande espelho, com este encarando-o em retorno.
Quem o mirava era um ser de olhos cansados e afundados em densas olheiras, deixando a mostra uma vida de pouco descanso. Além dos olhos viam-se lábios rompidos em diversos pontos, presente de si próprio por motivos de nervosismo, mania que tinha desde criança. Acima da boca, olhos, óculos, e bochechas brancas, a testa via-se extensa, mais do que o quanto se lembrara, com os cabelos bagunçados e o pescoço já escondido, por motivo de que o homem tinha a ruim mania de projetar a cabeça a frente para ler, alimentar-se ou concentrar-se.
Era uma pessoa curiosa, certamente, mas mais do que isso, era alguém estranho. Estranho a si próprio, via a notar. E aquelas palavras - até os ípsilons são necessários - sabia mesmo de onde vinham? Estremeceu-se.
E como uma onda surda de verão, do observador distante e concentrado na imagem a qual se observa, surgiu de dentro de Fernando um fenômeno surrealmente quieto, só o sentia, como que do fundo de sua mente. Surgia a lembrança.
Verão de 2011 - lembrou-se, e tudo veio a tona.
Arte verde que teve em suas mãos e que a tudo mudou. Entidade de tamanha força, que na época fez com que Fernando questionasse suas próprias escolhas, sua vida, sua sociedade. Seu rumo, lembrava-se bem, seria traçado a partir da compreensão daquelas impactantes palavras, que para ele tanto significaram.
Verão de 2011. Mesmo verão em que Fernando havia deixado cair de suas mãos seu óculos (desastrado que era), em direção ao chão duro, espatifando suas lentes em dezenas de peças cortantes.
A verdade - e no fundo de seu eu, com certeza, ele já a sabia - encontrou-o: Como sua lente espatifada era sua mente e sua alma. Como seu óculos ele pôde partí-la em diversos pedacinhos de si. Em algum momento de seu passado todo o que viera da arte verde havia sido colocada em um só daqueles pedacinhos de Fernando, e assim este conseguiu remediar sua maioria conservadora das idéias revolucionárias que um dia teve, de como sua vida poderia ter mais significado, como o mundo poderia ser visto com novos olhos. E esta mísera parte de si mesmo havia sido guardado tão fundo adentro de Fernando, que somente poucas lembranças a trariam de volta a superfície, para novamente haver de emergir para o esquecido.
E assim o fez, como havia de ser. Pois não há mestre de empresas, homem de família, onde também há o estudante infinito, o apreciador da arte a ser buscada, o viajante eterno, o suicida e o depressivo, todas essas facetas unidas em uma única palavra: o novo. Pois o novo não serve para a sociedade, para o bem comum, sabia bem. E com esta frase de tamanha covardia Fernando tornou a vestir sua face de seriedade, a evitar de encarar o seu eu estranho preso a um espelho da verdade intolerável, e retornou a seus deveres. Haviam pessoas a serem demitidas, novas peças a serem anexadas e novos produtos a serem produzidos.
E novamente aquele rebelde dentro de si teve de ocultar-se perante a normalidade das coisas, e a falta de coragem do homem que já quis tudo por uma leitura revolucionária, por um novo olhar de seu mundo que de tão devassador nada mais poderia requisitar de seu visionário além do fim de sua normalidade e de sua ordem supostamente natural.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Tulipas - Primeira Parte.

E de repente, não mais que de repente, ao vislumbrar mais uma vez o azul pálido das gélidas paredes de seu quarto de dormir, no canto em que, além de dividirem aresta entre duas de suas representantes, encontravam-se com os degrais brancos do detalhamento em gesso do revestimento do teto; ao som de nada mais que o raro silêncio presenteado por ainda mais raros momentos em que a mente está tão maravilhada por acasos de um vislumbre de algo tão belo que se fazem calar as vitrolas do pensamento; ao sentir do acolhedor toque de seu colchão de descanso do alto de sua nuca até seus calcanhares em movimentos curtos, sentiu-se mais do que si mesmo. Sentiu-se mais do que se deve sentir em quedas livres de aviões rompidos, ao respirar ar fresco após décadas de aprisionamento ou em observar terra firme após longo tempo em náufrago. Sentiu mais do que se deve sentir em uma vida de emoções. Sentiu todo o seu mundo, tudo o que conhecia por real ou abstrato mergulhar verticalmente em seu âmago. Sentiu-se frágil como cristal e potente como um touro enraivecido; aberto para sentimentos a descobrir, e segregado aos que predecera aquele momento tal coleira em pescoço de carne viva.

No espaço de tempo do bater de asas de um beija-flor, tudo o que o havia inundado retornou agilmente a seu antigo local de equilíbrio. Porém tudo era novo a seu próprio modo, assumindo novo significado e vigor.
- Tome-me. – Disse o garoto de aparência exausta, após breve hesitação, movendo seus grandes olhos vagos em direção à sua co-protagonista. – Tome tudo o que tenho e que já tive. Tome meu coração e o meu peito; meu esqueleto esguio, carne e órgãos. Tome tudo o que já emanou meu nome para si. É seu, tudo é seu e de ninguém mais, pois sem você este todo não passaria de carcaça putrefada e gélida, movendo-se por inércia e códigos de conduta.
“Nada peço em troca”. Continuou o garoto. “Nada que haveria de ser debitado de minha rainha e dona poderia vir a trazer-me crédito.”
Os olhos do garoto então deslocaram-se daquela figura já deformada pelo tempo em sentido às suas próprias mãos. “Ela amava estas fracas mãos” pensou.
A inescrupulosidade da realidade ataca como cobra peçonhenta aos que fogem de sua ordem, e, ao sentir o veneno áspero da impotência, o garoto agora desperto, já em olhos fadigados e mãos demasiadamente surradas, correu seu braço à procura do quente que não mais fervia; do volume não mais ocupante do espaço a seu lado, da luz que não mais brilhava por entre suas cobertas agora desertas.

Com as lágrimas que invariavelmente correm pelos rostos dos que sofrem de amor, garoto-homem tomou então sua decisão: Não havia mais nada a perder, e ninguém mais por quem perder. Moveu olhar e mãos trêmulas à caixa que a semanas estava à espera da fria aceitação da morte certa ou da mais devastadora das desilusões. Ao conteúdo que poderia valer-se de anos de pesquisas lunáticas em busca do que – se a lógica fizesse valer – revelaria-se grande decepção.
Pandora era o nome curiosamente engravado em dourado na madeira avermelhada que a revestia, e tal montante de surpresas revelariam-se em somente um amontoado de escritos que finalizariam por revelar o destino do pobre homem que os possuíra, e que em si consistem no âmago desta história, e de todos os infelizes que a rodeiam.

Respirou fundo. Já sentado, com luzes e mente acesas, encontrou com as pontas dos dedos o fecho de seu destino, sem antes roçar com as amadas mãos de sua musa o exterior daquele que viria a revelar-se o caos de um homem, a perdição de gerações ou desperdício desfortuno.
“Que Deus nos ajude”, proferiu por fim antes de abrir seu tesouro.
Continua.

domingo, 20 de dezembro de 2009

O despertar de Maurício - Segunda Parte.

O despertar de Maurício - Primeira Parte.

De forma geral, Sonia comprovara ser uma boa - talvez "funcional" seja o adjetivo mais apropriado - companhia para Maurício através de todas aquelas singulares noites em que convivera com seu companheiro.
Já há tempos decifrara o terror nas feições dela quando esta o abraçara com unhas penetrantes em seu lombo; o padrão de seu leve corpo em dobrar-se agilmente de forma a jogar seu rosto ruivo acima dos ombros dele, para que este não visse as lágrimas que desciam de seus olhos; a graciosidade com que após deixá-lo para deitar-se (desta vez para o sono e não para o carnal), sempre sola, jamais com seu Mau em seus braços, soltava suspiros de gratidão e prazer.
Ele via, na forma particular dela prendê-lo a si mesma, o desespero de alguém que, como ele, soltou-se de sua órbita natural para cair em um mundo de realidades tão frias e cruéis (como só a realidade consegue ser) que fazem com que a não-realidade seja agradável de tão leviana.
Olhou-a brevemente. A silhueta esbelta de seu corpo de fina cintura sob a parcial escuridão era solene. Sob seus cabelos - longos e lisos, finas linhas de vermelho bronze -, escondia-se o rosto rubro de sardas, o único que Maurício vira até então o qual combinara graciosamente com o fogo emanante das retinas dela, de si mesmo e de seus companheiros. Era bela. Jamais a amaria. Jamais. Porém, era bela.

O dia do ultimato romântico da libertação, da heróica soberba escapada - embelezada por todos os efeitos pirotécnicos e acrobáticos dignos das maiores empreitadas cinematográficas -, daquele dia de verão em que Maurício se perdera de sua colméia para adentrar em um rebanho; o dia dos dias. O dia: Se perdera em sua memória.
Não nos cabe compreender a memória, antes devemos tentar compreender o funcionamento do intelecto. Das analogias diversas que a mente desperta de Maurício incubara para tentar explicar sua própria incubação, a ele era preferida a dos halteres harmônicos. Em seus pensamentos - agora tão inconvenientes, incontroláveis, caóticos, belos, maravilhosos, traiçoeiros, cruéis - sua mente era como um daqueles garfos metálicos usados para ensinar física da ressonância: algo ordinário, que causa pouco mais do que leve fascínio juvenil por repetir o som de um de seus semelhantes quando o outro está a ressoar em sua frequência. Algo repetidor. Frequências repetidas eram sua mente pré-despertar. Após o mesmo, era como se seu haltere fosse então provido de personalidade própria, frequências próprias, caos particular próprio.
Metáforas de halteres talvez explicariam o porquê de, após pouco mais de um ano, a lembrança de seu "dia dos dias" seja em suma um emaranhado de descobertas meramente compreensíveis, de medos alucinantes e de uma breve miragem de um automóvel conversível rumo ao horizonte.

*

Louise era o único cuja presença acalmava Maurício. Possuía pele de um negro opaco e intenso, físico mediano, era alto - algo como dois metros de altura -, e possuía um sorriso que o fazia camuflar-se em garoto: ao mesmo tempo o diminuía e o engrandecia. Maurício o admirava como se admira um objeto tão raro cuja toda e qualquer característica deveria ser estudada, cujo todo e qualquer aspecto deveria causar fascínio. Louise era raro porque era alegre. Era calmo e era tranquilo, como ninguém a seu redor era. Mau tinha a crença secreta de que Louise, em seus momentos de alegria, fazia fugir brevemente pouco do vermelho, característico daquele povo, dos seus próprios olhos, liberando parte do que costumava ser suas janelas da alma, antes de seu próprio e particular despertar. Castanho esverdeado era a cor que Maurício pensara vislumbrar em tais raros momentos, mas jamais perguntara a seu colega quais eram as cores de seus olhos. Às vezes o mistério é mais agradável do que a verdade e sua possível desanimadora realidade.

- Grande Maurício! - Saudou seu colega. Pelo seu tom de voz ja era de se perceber que algo não era normal.
- Louise... Por que você aqui tão cedo?
- Vim informar-te um pedido do alto escalão...
Instantaneamente o rosto de Maurício esbranquiçou-se. Seu coração encheu-se do maior dos pesares; seus olhos amearaçam lágrimas.
- Não, cara. Não, não, por favor... Mais um não, por favor não... Por que eu de novo?
Louise perdeu seu doce sorriso. Doía-lhe estar naquela posição, ser ele a informar a seu amigo.
- Você é o cara para esse serviço, sabe disso... Precisam de você nessa... Escute: É um garoto desta vez, um piá pequeno...
Ao som destas últimas palavras, Maurício aterrorizou-se ainda mais, porém nada disse. Não havia por que descontar sua ira em seu companheiro - e desta vez mero mensageiro. Com um olhar que dispensava palavras, Maurício fechou a porta de sua residência para voltar-se a seu leito.
O terror de Maurício é facilmente explicado: Desde sua chegada ao "vilarejo dos despertados", seus governantes acharam nele um particularmente habilidoso professor. Professores são os nomes dados aos infelizes que, incumbidos do igualmente inafortunado dever de servir à comunidade, passam horas defronte aos seus novos cohabitantes, em um processo de limpeza. Basicamente, quando os halteres estão perdidos entre o caos de novas e incontroláveis frequências, o professor tenta proporcionar algum sentido para seu colega. Tenta fazer o recente despertado reconhecer o que está ocorrendo ao seu redor. Maurício sabia pelo protocolo que tal horrível tarefa de combater desordem mental com palavras ocorreria já no dia seguinte, e acima de tudo seria uma criança: as mais imprevisíveis dentre os insanos recém-chegados.

Continua.

domingo, 1 de novembro de 2009

Sentir - Segunda Parte.

Sentir - Primeira Parte.

Deixara de ser berro bélico, era agora obra sinfônica.
Às manhãs, "Laila" era motivo de sorrisos, de fazer roçar a cabeça contra travesseiros e cobertas como felino preguiçoso. Às refeições e aos momentos de concentração era refúgio singelo. Quando dito no ócio, despertava alegrias crescentes, incendiava nele como brasa, fazendo-o sentir-se novamente em seus braços, em seus insaciáveis lábios e dentes.
Envolvera-se nela, em tudo o que ela lhe proporcionava. Brincava em sua matemática platônica: fazia-se "função de Laila", pois nos sorrisos dela, em sua fala e em sua forma de ver o mundo, ele moldava seus próprios sentimentos. Aliás, não os moldava, estes faziam-se perante tais fatores qual girassóis seguem sua estrela, qual folhas soltas percorrem o vento: em harmonia metódica, um ritual já a ele inevitável.
Igualmente brincava consigo sobre a bobeira da qual era agora assíduo. Tolos e infantos eram seus atos, às vezes. Fazia-se um novo homem, com aquele sorriso bobo estampando sua face. Estava perdidamente encantado por sua agora - e talvez não tarde - companheira.

Ciclos faziam-se: seus beijos incitavam-o a desejar aquele profundo olhar dela. Seu majestoso olhar fazia querer beijá-la. Nesta dança repetitiva perdia-se a mente, e a sobriedade de seus pensamentos; como umidade em densa nuvem, condensavam-se suas idéias - antes lineares - e desciam por sua mente em gotas dispersas, deixando-o desnorteado.
No encanto dela, fluía nele tal chuva de aleatoriedades. Ocorria-lhe suas atitudes passadas, ocorria-lhe seus desejos, todo seu pensar. Transpassava-o suas obras preferidas, escritos, músicas, tal quais canções fluiam em tamanho caos em que se perdia a ordem e a destreza em administrar seu próprio consciente.
Divagava neste caos, naquele dia, em seus desenhos, seus tão adorados desenhos. Divagava sobre a vida que predescera Laila, sobre as mulheres que igualmente a predesceram. "Nunca tiveram chance alguma", afirmava para si. Sem saber o porquê, divagava em uma canção particular, que na sua adolescência era objeto de grande fascínio, sobre chuvas e buracos em telhados. Divagava sobre o que viesse a si, já não tinha controle sobre sua mente.

Longe de sua adocicada boca, perdia a noção daquele elemento que antes em sua vida fôra concreto, que por vezes havia sido motivo para sua irritação ou desconcentração, mas cuja constância constara ser definitivamente fiel, e de repente não mais o era: o tempo. No castanho celeste de seus olhos se perdiam as cordas que o atavam à linearidade cronológica. Dias aparentavam semanas; igualmente horas bem aproveitadas o transpassavam com a agilidade inclemente de um forte vento gélido de inverno.
Não sabia ao certo o quanto descorrera entre sua declaração a ela e o presente. Afinal, seria este o que estava por viver? Ou seria um sonho, um maravilhoso sonho de primavera, do qual não se deseja acordar?

Às noites, "Laila" era calmaria; era êxtase e era encantamento.
Naquela madrugada, ele pensava nos belos momentos de seu dia, os quais passara com sua musa. Divagava sobre sua canção da chuva, sobre seus pensamentos em condensação escorrendo-o.
Antes de apagar as luzes de seu quarto de dormir, vislumbrou uma última vez o mundo a cores. Riu para si mesmo, com a ingenuidade de quem conhece uma piada graciosa, e que se contada em voz alta não reproduziria nem de longe todos os seus encantos.
Deitou-se em seu leito com sua mente a cantarolar os versos:
"Estou a arrumar um buraco por onde a chuva entra, e impede minha mente de perguntar-se:
Para onde ela iria?"

Continua.

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quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Projeto Ricky Fitts: Adjetivando a beleza. I

O Projeto Ricky Fitts consiste de uma série de atestamentos que descrevem – ou tentam descrever – a beleza do mundo. Tais atestamentos, curtos, darão ênfase à descrição de cenas soltas, por vezes desconexas, de eventos e acasos que por ventura ocorrerem no dia de sua escrita ou que forem despertados pela memória.
O nome é homenagem ao personagem Ricky do brilhante Beleza Americana (American Beauty – 1999), e o projeto em si é inspirado em, dentre outras maravilhosas belezas, “Noites” - http://discutindocommeusmonologos.blogspot.com/2009/08/noites-parte-i.html .
Ricky Fitts, em sua cena histórica, sob atuação de Wes Bentley, descreveu a beleza do mundo ao mostrar uma sacola plástica, que estava “tipo dançando” com ele, por quinze minutos ao vento.
Todas os fragmentos – nomeados “Coplas” – serão respostas à questão: “A beleza é?”.

Primeira Copla.
É uma piadinha feita à beira de estrada. Um relance de uma fantástica dança. Uma foto de sorrisos, uma mesa de boas conversas e bons humores, uma música de fundo e uma cerveja gelada. É o que se depara quando se acorda após a fadiga e o sono, após a chegada. A maravilha de uma conversa num carro de madrugada. É uma frustração tola e cômica comparada ao dia incrível que se passou. O som da quebra de um chocolate meio amargo, e um filme sobre as mais humanas das emoções e dos anseios.

Segunda Copla.
É uma costela em fogo de chão. É a fumaça da madeira queimando, através das cinzas e da visão difusa pelo calor. O arder nos olhos do quente. É baixar a pressão e ver o mundo com olhos de calmaria, não ver o tempo passar e não sentir o sorriso subir. Um sanduíche com nacos espessos de cebola. É a conversa que se tem com um recém-descoberto sábio, e os olhares de conforto e desconforto que ele o passa. A menina que interrompe conversas e a encarada que seu amigo recebe, o humor que isso produz. A mais inquietante vontade – e nostalgia – de simplesmente estar com uma pessoa especial. É tatear o bolso à procura de ouvir àquela música que está na sua cabeça. É sol, gramado e cansaço. É uma imagem que diz magistralmente o que infinitos escritos não comporiam. O sorriso por um apreço recebido, são os escritos em um computador silenciado.

Terceira Copla.
É o medo gostoso que cresce pela espinha ao tomar-se em mãos um automóvel em alta velocidade, a sensação de poder e de merecimento ao saber que vidas humanas estão a seu controle. É o pairar do cosmos sob o olhar daqueles que mal o conhecem por motivos de luzes artificiais; a doce sensação de parecermos tão pequenos, ao depararmos com um céu lindamente estrelado. A forma com que azeite sob carne de onça toma uma cor de amarelo desbotado ao receber gotas de sumo de limão, e como o sal que despenca sobre este lembra neve caindo em um lago de ferrugem.

Quarta Copla.
É uma viagem para um lugar ensolarado. A sensação da pedra dura e fria de arenito ao pousarmos as costas sob a parte seca de uma cachoeira, e a forma com que o sol nos cega e nos ilumina, em diversos sentidos. É um pássaro azul, uma coleção de borboletas amarelas que insiste em sobrevoar a beira de um rio aparentemente infinito. Um passear de barco em que, como no Louvre, se perdêssemos o tempo sensato a ver cada um dos pontos verdes, marrons, amarelos ou azulados, de suas peças de arte, amontoadas sobre morros imponentes e plantas aquáticas graciosas, perderíamos uma vida toda e por fim nada perderíamos. É o correr de um lagarto, uma brasa e um copo d’água de poço. É música, sorrisos, e uma noite perfeita por entre uma brisa leve de primavera.

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segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Sentir - Primeira Parte.

Sentir - Segunda Parte.

- De todos eles, você se identificou com a vampira, por quê?
Ele esperava esta pergunta, realmente não era uma revelação comum sua afinidade com a personagem feminina. Ao invés de responder de imediato, olhou-a brevemente e levou seu copo à boca, pensando em o que diria.
Ele poderia, sim, falar sobre como se identificava com tal ser fictício pela forma com que, sob perigo quase físico, a personagem requisitava o pedido para sua entrada em uma residência humana antes de fazê-la. Se identificava por que, desde sempre, sentia a necessidade de ser chamado a entrar, não em casa de outrém, mas sim em seus íntimos, em falar seus sentimentos, em gozar da solone experiência de receber ou não a reciprocidade de seus desejos perante uma mulher.
Poderia discorrer sobre como sentia-se inseguro em relação a ela, especialmente. Sua oratória privilegiada o daria palavras para descrever sua forma própria de admirá-la.
Conseguia ver-se falando sobre como, de uns tempos para então, passou a ter seus cadernos de desenho monopolizados por círculos do azul amarronzado que eram os olhos dela. Como igualmente sua mente encontrava-se monopolizada por também seus sorrisos e suas formas, olhares e feições. Via-se dissertando sobre como seus dias já não eram mais presenciados no real, e sim em um local imaginário de sua mente em que ela estava sempre presente, e quando fechava os olhos para descansar-se era ela quem o visitava em seu sono.
Imaginava como explicaria a forma com que, tola e invariavelmente, ria ou ao menos sorria ansiosamente a qualquer palavra vindo da boca dela; de como os sorrisos dela eram os mais belos presentes que poderia receber em uma vida de condecorações e apreços. Como a mera visão de seus traços fazia com que o mundo de repente tornasse a cores; Como que, quando ela o olhava apreensiva, ele se sentia o mais importante dos homens.
Falaria sobre como, às vezes, tais olhares criavam pequenas – e breves – raízes de esperança em seu coração. Sobre como, nestes momentos, divagava sobre como seria beijar as costas das mãos dela até o alto de seus ombros, como seria dar pequenas mordidas nas laterais de sua maxilar; em como seria o toque de seu busto sobre as costas frias dele, e a sensação do toque dos lábios dela em seu torso e em seu pescoço. Falaria sobre como tais curtos momentos daquela crença estavam tornando-se mais comuns a cada dia, a ponto de darem a ele um gosto de viver nunca antes presenciado, causando-o desejos de dar “bom dia” a cachorros quando saía de casa; falaria sobre como levantava sorrisos pelos cantos de sua boca ao ver casais de mãos dadas, ou ao ver pequenos fragmentos quaisquer em sua rotina que o lembrassem dela.
Em verdade, ele poderia discorrer horas sobre a beleza que ela representava. Sobre como as letras que compunham “Laila” já não eram mais símbolos literários, e sim peças sublimes de um grito de guerra emanado com suavidade, que afastava com sucesso qualquer mal que o pudesse atingir. Sobre como aquela palavra representava a ele um universo de elementos de beleza e misticidade maravilhosos, que nele faziam despertar as mais íntimas alegrias humanas, indescritíveis de tão majestosas.
Poderia discorrer sobre tudo isso e muito mais, pois tais sentimentos já o eram verdade inquestionável, e naturais a ele como o pulsar de seu coração ou o alargar de seu peito ao respirar.
Seu copo já estava à mesa e a água que este continha já estava inerte. Ele não havia falado palavras quaisquer, só a olhava diretamente em seu rosto, com seu olhar passando além dela e além do cenário em que se encontravam, pousando um lugar em que ele teria, sim, a ousadia de proferir todas aquelas expressões que enfim, mal dariam noção de quanto era o seu fascínio por Laila.
Por fim respondeu outra resposta falsa qualquer, sobre desejos vampirescos ou coisa que o valha. Sentiu ódio por si mesmo, mas ódio não era um sentimento que encaixava em qualquer cenário em que ela estivesse presente, e logo sua ira tornou-se apenas arrependimento por não ter a audácia da qual desejava.

Laila veio a ouvir de sua boca aquelas palavras – ou o que restara delas – eventualmente, mas não sem antes o decorrer de intermináveis meses, tempo em que ele presenciou sua Laila em braços de outro, e em que ele mesmo dividiu seus lábios e seu corpo com outras que, a seu ver, mal passavam de transeuntes em sua vida até aquela que o fizesse sentir-se em um mundo a cores novamente. Por vezes chegou a acreditar que esta não precisasse ser Laila, por vezes acreditou em suas mentiras de que era indiferente em relação a ela. Por vezes apaixonou-se.
Além de tudo o que havia dispersado em sua mente para lhe falar, discursou também sobre a inspiração que ela o presenteava, para toda e qualquer obra e atitude que ele realizava, mesmo quando sob a custódia de outras moças. Bebia de sua fonte de inspiração como se bebe do leito da cachoeira que possui a melhor e mais pura das águas, com a naturalidade e a ansiosidade quase feroz de uma criatura de sede incontrolável, e profundo apreço pelo que lhe desce a garganta.
Veio-se a lembrar do dia em que finalmente abriu seu coração a ela por toda a sua vida. Os meses em que carregou o fascínio por aquela mulher foram penosamente passados com um véu de máscaras em seu rosto, fala e olhar, por vezes denso, por vezes em farrapos, quando já exaurida a força de impedir que o resto do mundo soubesse a intensidade de seus sentimentos e de seus anseios. Naquele dia que enfim chegou, como um viajante fadigado, deixou-se soltar aquele fardo que sob suas costas tanto pesava.

Continua.

Dedico este texto a Khaled Hosseini, com sua personagem Laila de A Cidade do Sol.
E também a todos os escritores, que como Hosseini faz com extrema qualidade, criam através de sua arte ricas descrições das emoções humanas.
E naturalmente a todas as Lailas, nossas quedas d’água de infinita inspiração.

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sábado, 19 de setembro de 2009

duas notas de dois e uma de um.doc

Farei-me curto e objetivo. O que menos quero é acordar minha amada ou alguns de meus agora já não tão pequenos pequenos. Algo em minhas memórias despertou-me de meu início de sono, e terei de carregar um par de olheiras e fadiga amanhã para ter a certeza de que farei aqui meu memento bem escrito. Trata-se de um momento em minha juventude, um acontecimento que pode ser considerado comum, porém quiçá o presságio de uma vida mais justa.

Era algum momento de 2008. Havia inscrito-me para um vestibular o qual não poderia aproveitar sua vaga por motivos de idade, e aquele era o dia de sua prova, em algum bairro afastado de minha residência da época em Curitiba. Após a prova, dirigi-me a um terminal de ônibus, não me lembro qual, me lembro apenas de seu caos naquele dia.
A fila para a entrada no terminal por pouco não o circumpletara por completo, de gente jovem de aspecto violento. Pus-me nesta fila, e tentei fazer-me acostumado ao cenário. Lembro-me de que atrás de mim garotas, as quais não aparentavam mais de quatorze ou quinze anos, conversavam demonstrando tal efeito de drogas alucinógenas que só o escutar daquela conversa débil já era estonteante. Uma delas havia perdido o celular. Pouco importara.
Lembro-me de que em certo momento, um ônibus teve de buzinar e dar ímpetos de atropelamento para cima do povo, em busca de uma oportunidade de acoplar suas rampas e portas em um tubo do terminal. Com as portas abertas, recordo-me de que em poucos minutos cerca de quarenta, cinquenta ou cem garotos e garotas pularam por tais para evitar pagarem a passagem.
Quando finalmente cheguei à entrada, podia ver medo e tensão estampados nos rostos dos cobradores da passagem, que nada podiam fazer caso um grupo de criminosos os assaltasse. Lembrara-me de ter duas notas de dez reais na carteira, tirei uma nota e entreguei sem nem vê-la, e ao receber o troco correspondente ao valor de cinco reais, levantei objeção ao funcionário em minha frente.
Serei sincero: Não me lembro das palavras, se é que houveram palavras. Mas me lembro daquele rosto. Suas feições espalhavam-se por toda sua face estampando em letras garrafais “ladrão”, “oportunista”. Seus olhos metralhavam-me como a personificação da espada da justiça. Recebi cinco reais de suas mãos - duas notas de dois e uma de um - amassadas e entregues tal qual veneno a filho de sangue, com um asco, por parte do cobrador, indescritível.
Não pude andar mais que vinte metros. Perguntara-me se eu possuíra anteriormente realmente duas notas de dez reais. Havia as visto na fila com tamanha rapidez que facilmente poderia ter cometido um engano. Além disso, por mais que eu não tivesse dito a verdade, na situação do cobrador seria natural que ele desse o dinheiro, mesmo que relutante.
Retornei ao homem dos olhos de julgamento e perguntei-o se realmente o havia entregado uma nota de cinco. Ao receber a temida resposta negativa, entreguei em olhos de humildade as notas roubadas de dois e de um.
Ah, sim. A palavra ladrão já constava anteriormente no meu dicionário como a de um desmerecedor, de um ser sem escrúpulos, da ralé da sociedade, mas foi somente naquele momento que a senti em realidade.
Talvez seja tal simples equívoco de cifras, que tenho em meu histórico oportunidades corruptas relevadas e opções políticas questionáveis deixadas de lado. Talvez somente um olhar acusador foi o necessário a levar-me hoje a ser a pessoa honesta que sou. Não sou presidente da república, não sou grande personalidade política no quesito influência. Mas sou limpo, e o sou com o orgulho do homem que já viu o reflexo de uma corrupção de moral – uma corrupção por engano, mas ainda corrupção - em sua consciência.
Amanhã terei de ir à câmara e depois fazer outros compromissos de cunho persona publica até bastante tarde. Espero que Fernanda não se deprima por eu chegar a sua formatura tão tarde. Afinal, não posso deixar os olhos daquele cobrador fitarem-me. Não novamente.

Nota publicada por: Fer. Matos
- Encontrei este arquivo entre as pastas de papai. Salve-o contigo, creio que gostará de ler. Não é justificativa para suas atitudes, mas, sinto-me tocada por suas palavras. Papai sempre foi uma pessoa complicada de se entender. Pergunto-me se ele iria se “deprimir” se eu também faltasse a seu enterro. E se estou sendo muito dura com ele.

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