terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Tulipas - Primeira Parte.

E de repente, não mais que de repente, ao vislumbrar mais uma vez o azul pálido das gélidas paredes de seu quarto de dormir, no canto em que, além de dividirem aresta entre duas de suas representantes, encontravam-se com os degrais brancos do detalhamento em gesso do revestimento do teto; ao som de nada mais que o raro silêncio presenteado por ainda mais raros momentos em que a mente está tão maravilhada por acasos de um vislumbre de algo tão belo que se fazem calar as vitrolas do pensamento; ao sentir do acolhedor toque de seu colchão de descanso do alto de sua nuca até seus calcanhares em movimentos curtos, sentiu-se mais do que si mesmo. Sentiu-se mais do que se deve sentir em quedas livres de aviões rompidos, ao respirar ar fresco após décadas de aprisionamento ou em observar terra firme após longo tempo em náufrago. Sentiu mais do que se deve sentir em uma vida de emoções. Sentiu todo o seu mundo, tudo o que conhecia por real ou abstrato mergulhar verticalmente em seu âmago. Sentiu-se frágil como cristal e potente como um touro enraivecido; aberto para sentimentos a descobrir, e segregado aos que predecera aquele momento tal coleira em pescoço de carne viva.

No espaço de tempo do bater de asas de um beija-flor, tudo o que o havia inundado retornou agilmente a seu antigo local de equilíbrio. Porém tudo era novo a seu próprio modo, assumindo novo significado e vigor.
- Tome-me. – Disse o garoto de aparência exausta, após breve hesitação, movendo seus grandes olhos vagos em direção à sua co-protagonista. – Tome tudo o que tenho e que já tive. Tome meu coração e o meu peito; meu esqueleto esguio, carne e órgãos. Tome tudo o que já emanou meu nome para si. É seu, tudo é seu e de ninguém mais, pois sem você este todo não passaria de carcaça putrefada e gélida, movendo-se por inércia e códigos de conduta.
“Nada peço em troca”. Continuou o garoto. “Nada que haveria de ser debitado de minha rainha e dona poderia vir a trazer-me crédito.”
Os olhos do garoto então deslocaram-se daquela figura já deformada pelo tempo em sentido às suas próprias mãos. “Ela amava estas fracas mãos” pensou.
A inescrupulosidade da realidade ataca como cobra peçonhenta aos que fogem de sua ordem, e, ao sentir o veneno áspero da impotência, o garoto agora desperto, já em olhos fadigados e mãos demasiadamente surradas, correu seu braço à procura do quente que não mais fervia; do volume não mais ocupante do espaço a seu lado, da luz que não mais brilhava por entre suas cobertas agora desertas.

Com as lágrimas que invariavelmente correm pelos rostos dos que sofrem de amor, garoto-homem tomou então sua decisão: Não havia mais nada a perder, e ninguém mais por quem perder. Moveu olhar e mãos trêmulas à caixa que a semanas estava à espera da fria aceitação da morte certa ou da mais devastadora das desilusões. Ao conteúdo que poderia valer-se de anos de pesquisas lunáticas em busca do que – se a lógica fizesse valer – revelaria-se grande decepção.
Pandora era o nome curiosamente engravado em dourado na madeira avermelhada que a revestia, e tal montante de surpresas revelariam-se em somente um amontoado de escritos que finalizariam por revelar o destino do pobre homem que os possuíra, e que em si consistem no âmago desta história, e de todos os infelizes que a rodeiam.

Respirou fundo. Já sentado, com luzes e mente acesas, encontrou com as pontas dos dedos o fecho de seu destino, sem antes roçar com as amadas mãos de sua musa o exterior daquele que viria a revelar-se o caos de um homem, a perdição de gerações ou desperdício desfortuno.
“Que Deus nos ajude”, proferiu por fim antes de abrir seu tesouro.
Continua.