domingo, 20 de dezembro de 2009

O despertar de Maurício - Segunda Parte.

O despertar de Maurício - Primeira Parte.

De forma geral, Sonia comprovara ser uma boa - talvez "funcional" seja o adjetivo mais apropriado - companhia para Maurício através de todas aquelas singulares noites em que convivera com seu companheiro.
Já há tempos decifrara o terror nas feições dela quando esta o abraçara com unhas penetrantes em seu lombo; o padrão de seu leve corpo em dobrar-se agilmente de forma a jogar seu rosto ruivo acima dos ombros dele, para que este não visse as lágrimas que desciam de seus olhos; a graciosidade com que após deixá-lo para deitar-se (desta vez para o sono e não para o carnal), sempre sola, jamais com seu Mau em seus braços, soltava suspiros de gratidão e prazer.
Ele via, na forma particular dela prendê-lo a si mesma, o desespero de alguém que, como ele, soltou-se de sua órbita natural para cair em um mundo de realidades tão frias e cruéis (como só a realidade consegue ser) que fazem com que a não-realidade seja agradável de tão leviana.
Olhou-a brevemente. A silhueta esbelta de seu corpo de fina cintura sob a parcial escuridão era solene. Sob seus cabelos - longos e lisos, finas linhas de vermelho bronze -, escondia-se o rosto rubro de sardas, o único que Maurício vira até então o qual combinara graciosamente com o fogo emanante das retinas dela, de si mesmo e de seus companheiros. Era bela. Jamais a amaria. Jamais. Porém, era bela.

O dia do ultimato romântico da libertação, da heróica soberba escapada - embelezada por todos os efeitos pirotécnicos e acrobáticos dignos das maiores empreitadas cinematográficas -, daquele dia de verão em que Maurício se perdera de sua colméia para adentrar em um rebanho; o dia dos dias. O dia: Se perdera em sua memória.
Não nos cabe compreender a memória, antes devemos tentar compreender o funcionamento do intelecto. Das analogias diversas que a mente desperta de Maurício incubara para tentar explicar sua própria incubação, a ele era preferida a dos halteres harmônicos. Em seus pensamentos - agora tão inconvenientes, incontroláveis, caóticos, belos, maravilhosos, traiçoeiros, cruéis - sua mente era como um daqueles garfos metálicos usados para ensinar física da ressonância: algo ordinário, que causa pouco mais do que leve fascínio juvenil por repetir o som de um de seus semelhantes quando o outro está a ressoar em sua frequência. Algo repetidor. Frequências repetidas eram sua mente pré-despertar. Após o mesmo, era como se seu haltere fosse então provido de personalidade própria, frequências próprias, caos particular próprio.
Metáforas de halteres talvez explicariam o porquê de, após pouco mais de um ano, a lembrança de seu "dia dos dias" seja em suma um emaranhado de descobertas meramente compreensíveis, de medos alucinantes e de uma breve miragem de um automóvel conversível rumo ao horizonte.

*

Louise era o único cuja presença acalmava Maurício. Possuía pele de um negro opaco e intenso, físico mediano, era alto - algo como dois metros de altura -, e possuía um sorriso que o fazia camuflar-se em garoto: ao mesmo tempo o diminuía e o engrandecia. Maurício o admirava como se admira um objeto tão raro cuja toda e qualquer característica deveria ser estudada, cujo todo e qualquer aspecto deveria causar fascínio. Louise era raro porque era alegre. Era calmo e era tranquilo, como ninguém a seu redor era. Mau tinha a crença secreta de que Louise, em seus momentos de alegria, fazia fugir brevemente pouco do vermelho, característico daquele povo, dos seus próprios olhos, liberando parte do que costumava ser suas janelas da alma, antes de seu próprio e particular despertar. Castanho esverdeado era a cor que Maurício pensara vislumbrar em tais raros momentos, mas jamais perguntara a seu colega quais eram as cores de seus olhos. Às vezes o mistério é mais agradável do que a verdade e sua possível desanimadora realidade.

- Grande Maurício! - Saudou seu colega. Pelo seu tom de voz ja era de se perceber que algo não era normal.
- Louise... Por que você aqui tão cedo?
- Vim informar-te um pedido do alto escalão...
Instantaneamente o rosto de Maurício esbranquiçou-se. Seu coração encheu-se do maior dos pesares; seus olhos amearaçam lágrimas.
- Não, cara. Não, não, por favor... Mais um não, por favor não... Por que eu de novo?
Louise perdeu seu doce sorriso. Doía-lhe estar naquela posição, ser ele a informar a seu amigo.
- Você é o cara para esse serviço, sabe disso... Precisam de você nessa... Escute: É um garoto desta vez, um piá pequeno...
Ao som destas últimas palavras, Maurício aterrorizou-se ainda mais, porém nada disse. Não havia por que descontar sua ira em seu companheiro - e desta vez mero mensageiro. Com um olhar que dispensava palavras, Maurício fechou a porta de sua residência para voltar-se a seu leito.
O terror de Maurício é facilmente explicado: Desde sua chegada ao "vilarejo dos despertados", seus governantes acharam nele um particularmente habilidoso professor. Professores são os nomes dados aos infelizes que, incumbidos do igualmente inafortunado dever de servir à comunidade, passam horas defronte aos seus novos cohabitantes, em um processo de limpeza. Basicamente, quando os halteres estão perdidos entre o caos de novas e incontroláveis frequências, o professor tenta proporcionar algum sentido para seu colega. Tenta fazer o recente despertado reconhecer o que está ocorrendo ao seu redor. Maurício sabia pelo protocolo que tal horrível tarefa de combater desordem mental com palavras ocorreria já no dia seguinte, e acima de tudo seria uma criança: as mais imprevisíveis dentre os insanos recém-chegados.

Continua.

Um comentário:

Rafael disse...

Ah, fazia tempo que não escrevia também.

Seu novo blog tá muito bom cara, você evoluiu demais! Você já escrevia bem e agora tá muito foda!

A gente se vê por aí, ou não, já diria Caetano. Abraço!