terça-feira, 4 de novembro de 2008

O despertar de Maurício - Primeira Parte.

O despertar de Maurício - Segunda Parte.

Como todos a sua volta, Maurício era feliz.
Sentia os pães de queijo quentes em sua mão naquela manhã, como sentia todos os dias, e senti-los o dava fome. Com fome Maurício se alimentava, na mesma mesa de sempre, com a mesma companhia de sempre, os mesmos sorrisos, as mesmas conversas. Maurício podia até prever as falas das suas colegas, o que não o impressionava; porém, naquele momento, nosso protagonista se viu fazendo uma pergunta que não lhe era de natural, mas que saiu dele como a mais certa de todas as coisas:
- Por que você está sorrindo?
- O que? - Disse sua colega, mantendo o mesmo sorriso inerte. - Porque sim.
Maurício não atingiu compreensão. Indagava com sinceridade:
- Sério, por que você está sorrindo? Aliás, por que vocês todas estão sorrindo?
Para ele aquelas perguntas significavam uma ofensa, ou mesmo se fossem verdade significariam um grande choque, mas elas mal pareciam ouvir-lhe, mantinham suas expressões débeis de felicidade. Foi quando aconteceu.
Os poucos segundos em que Maurício se deu conta da alegria insana que o rodeava foram o suficiente a desencadear nele uma onda de questionamentos.
Maurício olhou às suas colegas novamente e começou a dissertar:
- Qual é o motivo disso tudo?... Vocês não... Não sentem um vazio, um vazio enorme em toda esta colméia em que vivemos?
Não conseguia segurar seus pensamentos. Olhava à sua volta e o que antes tinha por normal agora era absurdo, de tudo sua mente questionava "como?", "por quê?". Varreu os ínfimos de sua memória e pensou em todas as vidas que tinha notícia, no vazio de tudo, na incerteza e na falsidade. Discursava agora feito um louco para quem estivesse perto, para o horror de suas colegas, mas sem tirar o sorriso demente de suas faces.
Maurício realizava tal revelação que não viu no espelho do refeitório seus olhos queimando em vermelho vivo com aquele novo homem que surgia dentro dele. Tampouco pôde ouvir os automóveis correndo loucamente pela rua transversal à do refeitório. Quando enfim chegaram, porém, ouviu-se um estrondo.
- Maurício das Neves! Maurício das Neves! - Gritava um agente de corpo pesado que entrara correndo pela porta. - Temos provas de que a Infecção o teve como vítima! Por favor, identifique-se!
Mais agentes entravam depressa pela porta, e em todos se via um grande punho demarcado em seus macacões, com os escritos "A Força Estatal". Tais agentes agora seguiam dizendo:
- Para a proteção sua e de seus colegas, identifique-se!
Maurício sentia estar em um pesadelo. Não só a Força o fazia estremecer, como a idéia da Infecção. Mas era algo além. O que descobrira naqueles passados minutos o transformara como nada antes o fez. Chegou a perguntar-se "seria isso a Infecção?", mas não pôde terminar seu raciocínio. Um dos agentes que virava rostos de jovens presentes com sua mão e os mirava, juntamente a mirar uma foto recém-impressa de Maurício, teve a sua atenção desviada por uma jovem, a que havia sido perguntada se era feliz. Ela nada fez além de apontar com braço estendido a Maurício.
- Ele está aqui! Aqui! - Gritou o agente.
Homens de roupas escuras e máscaras de gás, os agentes da Força, correram a Maurício, que viu ser jogado sem hesitação de rosto a uma mesa, abrindo um rombo em sua bochecha esquerda. Via o sangue escorrer por sua face, mas sabia que não importava, estava infectado, estava morto.

O arrastamento até um dos furgões que diziam "A FORÇA ESTATAL" foi deveras rápido, e Maurício viu portas de aço fechar em sua frente. Voltou seu rosto ao chão, com o único pensamento repetido: "eu vou morrer, eu vou morrer". Ao notar que o automóvel não estava se movendo, olhou para frente e viu a cena mais amedrontadora de sua vida: A rua, geralmente calma, estava bloqueada em ambos os sentidos por automóveis incendiados; e os agentes Força, que Maurício podia observar através da grade de contenção do veículo, estavam paralisados, mas discutiam:
- Devemos tentar?
- O automóvel pode resistir... E você sabe que o espécime não deve ser capturado.
- É arriscado.
- Eu sei... Mas é necessário.
Maurício não sabia o que pensar. "Tentar o que? Passar pelos automóveis incendiados? Era suicídio! Espécime? Do que estavam falando?"
Sentia taquicardia no peito. Sentia ânsia. Sentia raiva, pressa, medo. Quis fechar os olhos e esperar aquele pesadelo horripilante acabar. Foi quando ouviu o ronco do motor e sentiu o movimento do furgão.
"Loucos!" - Pensou. Mas nada disse, não houve tempo nem voz. Ao chocar o veículo aos carros incendiados o impulso foi tamanho que Maurício voou de encontro à tela de proteção do furgão da Força. Desmaiado, não pôde ver os homens de rostos sérios, de uma seriedade nunca antes presenciada, arrombarem o veículo para seu resgate. Tampouco pôde ver seu transporte para longe de sua cidade - ou colméia, como este a descreveu mais cedo no mesmo dia - por gente nobre que beijava seu rosto, gente que deixava cair água dos olhos e que visava serenidade.
- Mais um salvo, Marcelo. Mais um salvo. - Falou do carro o homem de olhos vermelho-fogo.

Continua.

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2 comentários:

Nina Zambiassi. disse...

Esse texto me lembrou o filme "O show de Trumann", se não assistiu, indico, muito bom :)

-Gostei do texto!

Unknown disse...

A todo tempo estamos sujeitos à vil interferência das "forças estatais", seja para nos manter no estado de ignorância profundo acerca da realidade, seja para impedir a revelação da parafernália da dominação, seja para nos silenciar.
O despertar de Maurício me arrepiou.