domingo, 14 de novembro de 2010

Arte Verde - I

- Mas os operadores do barracão 4 não estão cumprindo as metas já há três meses. Repito: Três meses! - Para Fernando era engraçado ouvir a palavra "operadores" vindo daquelas pessoas, aqueles líderes desrespeitosos com eles mesmos, seus subordinados e todo o resto do mundo; provindos das mais insufladores de egos das escolas, porém que em tais reuniões se corrijiam do rude - cuspido, alguns diriam - termo "peão", ou "lacaio" (sendo o último caso para os mais cultos dos arrogantes), limitando-se ao comportado "operador".
- Essa regalia não pode continuar. - Dizia outro.
- O recursos humanos já se pronunciou, - recomeçou o homem do "operadores" - três semanas é o tempo hábil de que precisam e podemos suprir com nova mão-de-obra nossas necessidades.
Ouvia a tudo, Fernando, daquela conversa tão normal. Normal era tratar dos subordinados como peças. Normal era a recontratação em massa - curioso que não a tratam por "demissão em massa". E ele possuía um papel importante naquilo tudo, o cumpriria bem, tentaria dar um parecer para ambos os lados - os líderes que não obtinham produção e os peões revoltados. Porém havia algo de diferente, alguma memória dentro de Fernando estava prestes a emergir do denso mar do seu passado. Ainda não a via, porém algo de desconcertante estava a surgir em seus pensamentos.
- Isso contando que mantemos os líderes-dois ou os líderes-um? - Falou um dos homens à mesa.
"Ípsilons... Algo com ípsilons." Pensava Fernando, já um tanto alheio à conversa.
- O pessoal da qualidade já fez o levantamento dos que vão ficar, mas em teoria 100% dos líderes-dois e algo como 30% dos líderes-um. - Respondeu outro.
E veio a ele a lembrança em seu estado bruto. Escreveu prontamente as palavras que o acomenteram com sua lapiseira em uma folha a sua frente e leu o que havia escrito para seus colegas:
- "Até os ípsilons são necessários." - Sem obter significativa resposta, ou mesmo constatação de seu comentário, fato justificado que por essa primeira vez a frase ter saído em um tom de voz um tanto baixo, repetiu a falar, agora a pleno pulmão e olhando a seus companheiros, de forma pausada:
- Até os ípsilons. São necessários.
Nada. Nada além de olhares confusos obteve Fernando como resposta. Na verdade, falar em voz alta tal emblema o fez se lembrar de onde e quando havia enterrado tal peça em sua memória, de onde e quando havia pela primeira vez lido tal artefato, muitos e muitos anos atrás. Pediu licença para seus colegas - que encontravam-se um tanto confusos -, levantou-se de sua cadeira da mesa elíptica e dirigiu-se até o banheiro.
"Um olhar para si próprio revela mais do que cem padres e psicólogos", lembrou-se da expressão que sua mãe tanto falava, ao entrar pela porta e encarar o grande espelho, com este encarando-o em retorno.
Quem o mirava era um ser de olhos cansados e afundados em densas olheiras, deixando a mostra uma vida de pouco descanso. Além dos olhos viam-se lábios rompidos em diversos pontos, presente de si próprio por motivos de nervosismo, mania que tinha desde criança. Acima da boca, olhos, óculos, e bochechas brancas, a testa via-se extensa, mais do que o quanto se lembrara, com os cabelos bagunçados e o pescoço já escondido, por motivo de que o homem tinha a ruim mania de projetar a cabeça a frente para ler, alimentar-se ou concentrar-se.
Era uma pessoa curiosa, certamente, mas mais do que isso, era alguém estranho. Estranho a si próprio, via a notar. E aquelas palavras - até os ípsilons são necessários - sabia mesmo de onde vinham? Estremeceu-se.
E como uma onda surda de verão, do observador distante e concentrado na imagem a qual se observa, surgiu de dentro de Fernando um fenômeno surrealmente quieto, só o sentia, como que do fundo de sua mente. Surgia a lembrança.
Verão de 2011 - lembrou-se, e tudo veio a tona.
Arte verde que teve em suas mãos e que a tudo mudou. Entidade de tamanha força, que na época fez com que Fernando questionasse suas próprias escolhas, sua vida, sua sociedade. Seu rumo, lembrava-se bem, seria traçado a partir da compreensão daquelas impactantes palavras, que para ele tanto significaram.
Verão de 2011. Mesmo verão em que Fernando havia deixado cair de suas mãos seu óculos (desastrado que era), em direção ao chão duro, espatifando suas lentes em dezenas de peças cortantes.
A verdade - e no fundo de seu eu, com certeza, ele já a sabia - encontrou-o: Como sua lente espatifada era sua mente e sua alma. Como seu óculos ele pôde partí-la em diversos pedacinhos de si. Em algum momento de seu passado todo o que viera da arte verde havia sido colocada em um só daqueles pedacinhos de Fernando, e assim este conseguiu remediar sua maioria conservadora das idéias revolucionárias que um dia teve, de como sua vida poderia ter mais significado, como o mundo poderia ser visto com novos olhos. E esta mísera parte de si mesmo havia sido guardado tão fundo adentro de Fernando, que somente poucas lembranças a trariam de volta a superfície, para novamente haver de emergir para o esquecido.
E assim o fez, como havia de ser. Pois não há mestre de empresas, homem de família, onde também há o estudante infinito, o apreciador da arte a ser buscada, o viajante eterno, o suicida e o depressivo, todas essas facetas unidas em uma única palavra: o novo. Pois o novo não serve para a sociedade, para o bem comum, sabia bem. E com esta frase de tamanha covardia Fernando tornou a vestir sua face de seriedade, a evitar de encarar o seu eu estranho preso a um espelho da verdade intolerável, e retornou a seus deveres. Haviam pessoas a serem demitidas, novas peças a serem anexadas e novos produtos a serem produzidos.
E novamente aquele rebelde dentro de si teve de ocultar-se perante a normalidade das coisas, e a falta de coragem do homem que já quis tudo por uma leitura revolucionária, por um novo olhar de seu mundo que de tão devassador nada mais poderia requisitar de seu visionário além do fim de sua normalidade e de sua ordem supostamente natural.

Um comentário:

Renata disse...

Eu amo você.