sábado, 5 de janeiro de 2008

O Condenado.

Henrique nascera em meio a um mundo turbulento, e este pouco se lembrava de sua infância, estava vivendo em uma escola interna, indicada por sua mãe, que tratava Henrique como um rei, e o forçava a ter uma criação de rei.
Muitas vezes Henrique entrava numa guerra interna, tal como os semideuses de suas estórias de tempo de escola, onde disputavam o Henrique amoroso, que aceitava sua mãe e a vida imposta por ela, e o Henrique rebelde, que desprezava o mimo e o amor, e a vida programada que teriam, e é esse segundo, o rebelde, o livre, que deu o apelido de "Condenado" ao primeiro, que seria condenado a ter a vida que a mãe lhe impusesse.
Os anos passaram e Henrique estava passando agora para o melhor colégio de sua região, mas a ele pouco importava. Quando estava em suas aulas não dava atenção a seus mestres, e não se dedicava a nada nas dependências de suas instituições, e às vezes, nas noites de insônia, era tomado por aquela voz prudente do garoto rebelde, que o dizia para abandonar aquela vida, para ser livre e correr pelas cidades, procurando sua verdadeira vocação, e Henrique não acreditava ser rico em espírito e coragem para tomar essa vida, e foi afastando tal voz até que não mais a escutasse.
Pouco a pouco, o garoto aprendeu a aceitar aquela vida, em meio à nobreza e a burguesia, e aprendeu "jogar o jogo". Logo estava rumando para a melhor instituição de bacharelado das redondezas, e novamente não estava espantado ou feliz por tal acontecimento, somente deixou acontecer.
Os anos se passaram e Henrique viu a si mesmo recebendo um diploma, e olhando os sorrisos inertes dos mestres a que tanto desprezava, que não conhecia e não admirava, e novamente o garoto, agora homem, passou mais uma fase em meio ao desleixo, à indiferença. A alegria veio a seu encontro após tantos anos, ao pensar o que o aguardava em sua cidade natal, e decidiu ir a seu encontro.
Ao chegar à sua cidade notou que sua mãe, bastante conhecida em meio aos habitantes, aparentava não ter feito nada nos últimos 18 anos além de contar a todos sobre o filho prodígio que tinha, como ele freqüentava os melhores ensinos e como era dedicado e genial. Contava a todos como ele viria da união dela com um nobre forte e sábio, e Henrique não se surpreendeu ou tampouco veio a calar tal mentira, novamente estava aceitando uma fatia de vida embalada e entregue por sua mãe.
Não tardou até Henrique atingir a política, mal precisava falar em grandes eventos ou congregações, sua presença como o genial Henrique, o estudioso, o imensurável, já era o suficiente para garantir seu respeito, e Henrique caminhou cada vez acima, ganhando cargos e contatos, que como tudo em sua vida eram tratados com indiferença, e não lhe causavam surpresas.
Henrique beirava seus 28 anos quando começou o rumor de que estava em época de se casar, e o mesmo assentiu, como toda a sua vida o fez, e logo foi apresentado a uma moça de origem honrosa, e novamente aceitou essa nova vida, tratando sua esposa com frieza, com a mesma indiferença de todo o resto, mas agora era um homem de família e ao se questionar o porquê de sua indiferença, de sua frieza, crescia um lado incompleto em seu coração, como um vazio que não tardaria a consumi-lo por inteiro, e pela primeira vez em sua vida Henrique estava com medo, e não sabia o que fazer, não lhe passavam nova "fatia de vida" a cumprir, novos estudos a fazer, Henrique estava no controle de sua vida e isso o amedrontava profundamente.
Não tardou até chegar à sua sabedoria que um estado vizinho estaria sendo comandado por um irmão de sangue seu, e Henrique experimentou dessa vez ódio, ódio por sua mãe nunca ter lhe contado de seu irmão, e ódio pelo mesmo ter atingido tanto poder quanto ele.
Henrique pensava em seu irmão e somente nele, e como faria para superá-lo, e ao passar dos meses o ato de pensar e pensar se transformou pouco a pouco em missão, e a missão se transformou pouco a pouco em obsessão.
Já estava no comando de sua cidade, não havia cargo superior a ocupar, e sua família já tinha sido presenteada com filhos, mas Henrique não se importava, a frieza com que tratava suas obrigações era agora desleixo, e este já não se importava com seu povo e suas solicitações, ou sua esposa e seus pedidos, tampouco não havia comparecido ao enterro de sua mãe. Pouco a pouco sua obsessão por seu irmão devorou tudo o que ele havia atingido, sua esposa fugiu e levou seus filhos, o povo enraivecido o tirou do poder, e Henrique beirava o fundo do poço.
Quando esqueceu por um segundo de sua obsessão, por um mísero segundo, tomou consciência, e viu que estava sentado nas pedras da cidade que um dia havia comandado. Passaram-se alguns minutos, ou horas, ou segundos, Henrique já não sabia, e para sua surpresa, quando analisou tudo que havia perdido ele foi tomado por um forte contentamento, um contentamento viral, que o dominava por dentro e o deixava leve, leve como se pudesse voar. Henrique tentou chegar à raiz de seu contentamento, e então pensou. Seria o vazio interior que presenciara na época de seu casamento? Não, não podia ser, e então se afundou em seus pensamentos e descobriu o que inconscientemente já sabia há muito tempo. Viu com clareza aquele menino rebelde de sua infância, que olhava para a sua cara e ria, o chamando de "Condenado", debochando de Henrique e sua criação em mimo, e a vida que lhe tinha sido presenteada, e nunca obtida por trabalho ou esforço próprio.
Henrique tomou um novo estado de vida, onde compreendia cada lado do seu ser, a criação da ilusão do seu irmão, que trouxera sua ruína, e como odiava toda a vida que um dia teve, e agora o menino rebelde era homem crescido, e Henrique já era rico em espírito e coragem para poder traçar sua vida como bem entendesse. Sabia ele que naquele dia, embora velho, desgastado e pobre de riquezas, ele estava pronto para começar uma vida nova, como se tivesse acabado de sair do ventre de sua mãe, que tanto amava e odiava, e decidiu que na manhã seguinte ele iria procurar sua vocação, sua missão de vida, mas agora, naquele momento de lucidez, ele deixou-se tomar por contentamento, e apreciou cada segundo de sua queda e como havia sucedido em sua primeira e verdadeira missão, a primeira que não tinha sido dada ou cumprida para ele, e aquele contentamento passou a ser forte, forte como um touro dentro de Henrique, e ele tinha certeza, como nunca antes, que poderia ser o que quisesse, estudar a ciência que lhe ocorresse e viajar ao reino que lhe conviesse, e não haveria ninguém forte o suficiente para impedi-lo.

© Todos os direitos reservados.

2 comentários:

Anitcha disse...

MAis do que cutucar nosso interior, Henrique encaminha-nos a reflexão.
Ao ler o conto, não pude deixar de reparar nesse rebelde sem causa dentro dele. Como disse, sem mais objetivos impostos, se viu perdido, entretanto, com eles se sentia preso. Faltava-lhe equilíbrio.
Não, pra mim ele não é um garoto destinado a viver os sonhos da mãe. É um menino medroso que nunca se encontrou (pelo menos até os 28 anos).
Medroso, sim. Mesmo descontente com a própria vida, ele seguira por onde mandavam. Lógico, é o mais fácil. Assim não a receio nem culpa que o predam.

Desde o começo já se pode ver o que era esse buraco em Henrique. Era a vontade de viver.Centamente, um vácuo.

Rafael disse...

Ele precisava se conhecer um pouco. Brincar e falar mais com as flores do jardim de sua mãe, quando criança.

A princío sua mãe causou tudo, mas a culpa não foi dela. Ele seguiu o caminho que desejava, e foi até onde pode.

Como diria a célebre Sr. Tyler Durden: "Only when you lose everything that you're free to do anything." - Creio que o personagem aprendeu isso na prática.