quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Memento* em forma de carta.

O motivo pelo qual sento hoje e escrevo é simples: Não quero deixar-me esquecer.

Pode parecer normal tal desejo, mas certamente ele não o é quando se trata do assunto pelo qual escreverei. Comecemos do início:

Há um ano e poucos dias, houve para mim o fim de uma Era. Quem nunca se apaixonou pode indelicadamente não concordar com o que direi, mas a verdade é simples e curta: três meses são uma vida quando bem vividos. E estes três meses acabaram-se em três ou quatro dias. Não sei ao certo. Talvez meu desejo de consciência memorial seja recente. Talvez, não, certamente é recente.

Leio hoje um trecho do pior tipo de literatura, a fictícia, onde a dor de um fim chega a ser física de tão destrutiva e imobilizante. Isso faz-me lembrar de meu fim, da época já citada.

Se um dia nos questionarmos o que é a vida, não será a resposta sobre energia dada por um físico que nos trará esclarecimento, tampouco a resposta fria da biologia. A vida na realidade é um conjunto de memórias. Só isso. Um mero conjunto de memórias quimicamente propulsionado a continuar arrematando memórias. Memórias sensoriais, emotivas, de todos os tipos.

E eis que pergunto-me, se deixarmos pouco ou muito desta herança do tempo que nos é dada desvanecer-se, não estaríamos perdendo o pouco da vida que temos? E se somos os únicos a tê-las, não somos criminosos em ética ao perder tal patrimônio? Certamente... Mas, e se tais memórias são as tristezas mais fortes e destruidoras, perdas inimagináveis ou desgraças absurdas? São ainda a nossa vida, que estamos perdendo, ou estamos a criar a verdadeira vida deixando tais podridões de lado?

Não posso ignorar, apesar da força que tal conscientização implica: ainda me recordo da época sombria da qual irei relatar como sendo eu o sofredor de sua desgraça, e ninguém mais. Sou eu o recebedor do presente do lamento e da melancolia, então devo guardá-lo como um bem tão precioso quanto minhas memórias mais belas e graciosas.

Enfim, enquanto digiro a literatura da dor mental-física, pergunto-me quantas pessoas ao ler tal obra perguntam-se intrigadas se perderam algo importante por não terem sentido desgraça semelhante em suas vidas. Inúmeras, presumo.

A verdade é que não é uma dor física. Não é passível de torpor. E não é adiável. É terrível, mas é rápido; é aterrorizante, mas no fundo é libertador. É a pior coisa que se pode sentir em uma vida de loucuras emotivas, mas é ao que nos agarramos no fim. Esta é a verdade.

Quero que entenda, e que se lembre, ou que possa imaginar: Era o mais terrível dos vazios. Incomparável com qualquer depressão repentina, é avassalador, e age no primeiro minuto do dia, quando se acorda. Os olhos se abrem, os sonhos se desvanecem e a realidade chega em um baque: Pou, e tudo vem a tona, esmagando-o.

Você não pensará neste momento no prazo do seu trabalho escolar a entregar, ou do pagamento do seu IPVA ou qualquer coisa do tipo. Você só pensará nos olhos dela. E no seu sorriso. E isso já é o suficiente para fazê-lo querer poder jogar-se para trás e adormecer o dia todo para ver se no dia seguinte estará tudo acabado. E você sabe que não estará.

Não sei por quanto tempo esta fase durou. O baque de manhã é o pior elemento desta depressão, sem dúvida, pois você tem uma vida além daquilo que perdeu, é inevitável. Seu IPVA e seu trabalho escolar ainda estarão lá independente da vontade sua de que nada mais exista, ou de que magicamente o tempo volte atrás e que você possa mudar uma palavra ou outra que tenha dito.

Pois bem, os diálogos são os que mais atormentam. Disso talvez se lembre, de como os diálogos simplesmente repetem-se até o ponto em que não se pode mais saber a diferença entre o que foi dito e o que você desejava que tenha sido dito.

E os diálogos o perseguem, e você dorme. E você acorda se sentindo uma merda, e os diálogos retornam às vezes com imagens, a visão é sempre o sentido mais traidor. E passam-se dias, e semanas. E quando você acha que está mal, os finais de semana chegam e o ócio te derruba como o atropelar de um monstro que você sabe que esteve toda a semana te esperando; ele estava na espreita.

Mas os dias passam, as semanas passam, e sua atenção irá se prender a outras coisas. Não preciso dizer as datas que seguiram ao meu fim, não é verdade? Pois na verdade é o nosso fim, porém, está tão longe de mim agora, tão seguramente e pacificamente longe de mim, que creio que esteja desaparecido para você velho tolo. Não jogue partes de sua vida fora, lembre-se disso, nem se esta possua momentos os quais você julgue merecerem poda.

Pergunto-me se ao ler essas palavras conseguirá lembrar-se daquela velha cama, daquele velho quarto, e lembrar-se dos vazios das manhãs, ao menos. As memórias dos diálogos, e essas coisas. Só há algo pior do que a tristeza: O vazio que a substitui quando se quer esquecer. Lembre-se disso.


Com amor, admiração, e forte desejo de conhecê-lo,
Aquele que fez uso do que veio a ser seu corpo, e que abrigou sua mente, há tantos anos.

*Memento: Agenda onde se escreve tudo o que não deve ser esquecido.

© Todos os direitos reservados.

3 comentários:

Anônimo disse...

Você ainda vai escrever um livro e eu comparei!
Você escreveu simplesmente tudo. Parece que o que bloqueou aqui passou pra você por para fora.
Linda carta, parabéns.

Anônimo disse...

Quer ser lembrado? Sabe o que pode ser pior? Querer ser reconhecido.

Me pego pensando em como poderia ter sido, isso deve ser pior, em comparação com outras situações por mim mesmo vividas, vejo a diferença.

Apesar de tudo, tu és um cara de sorte, pense nisso.

Conflitante disse...

Não entendi o significado da palavra "reconhecido" no segundo comentário.
E sim, o personagem autor da carta é certamente um cara de sorte.